Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Instituições estão funcionando como geringonças militares que cospem fumaça

Quem viu o triste desfile da Marinha em Brasília deve ter se perguntado se voltamos a 1964

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Quem viu o triste espetáculo das geringonças militares desfilando em 10 de agosto na praça dos Três Poderes para entregar um convite de treinamento ao presidente da República deve ter se perguntado se estaríamos de volta a 1964.

Não bastasse a cena, no mínimo estranha, a Câmara dos Deputados havia marcado para a mesma data a votação da PEC 135/2019, que tornava obrigatório o voto impresso. Rejeitada na comissão especial por 23 votos a 11, foi levada a plenário de maneira inusual pelo presidente da Câmara e aliado de primeira hora do Planalto. Ainda assim, a proposta foi derrotada.

Nos últimos tempos, não são poucas as declarações ameaçadoras dadas por integrantes do governo envolvendo as Forças Armadas: da “nota à nação brasileira” do general Heleno, afirmando que um pedido de apreensão do telefone do presidente teria "consequências imprevisíveis”, à “nota oficial” do Ministério da Defesa dirigida ao Senado, afirmando que as Forças Armadas “não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.

O fato é que a história da nossa República se confunde com a história das Forças Armadas na sua busca por poder e protagonismo na vida política do país.

Foi um golpe militar que pôs fim ao regime monárquico no Brasil, levando o marechal Deodoro da Fonseca à Presidência em 1889, com intensa participação do Exército brasileiro, na figura do tenente-coronel Benjamin Constant.

Menos de dois anos depois, sem saber lidar com a oposição, Deodoro dissolveu o Congresso e instaurou o estado de sítio, e um contragolpe levou outro marechal, Floriano Peixoto, ao poder. Vale lembrar que o estado de sítio, instaurado mais de uma dezena de vezes durante a história da República, foi citado em tom de ameaça pelo presidente e corroborado em nota pelo procurador-geral da República, em que afirmou que “o estado de calamidade pública é a antessala do estado de defesa".

Da mesma maneira, foi um golpe civil-militar que levou ao poder o candidato da oposição derrotado nas eleições de 1930, Getúlio Vargas. Em 1937, um falso plano comunista descoberto pelo Exército, o Plano Cohen, engendrado pelo coronel Olympio Mourão Filho, integrante do setor de inteligência do Estado-Maior, foi o estopim para o novo golpe, que deu origem à ditadura do Estado Novo.

Foi o então ministro da Guerra, o general Eurico Gaspar Dutra, que converteu o tal documento em fake news ao lê-lo no programa A Hora do Brasil. Sob tal pretexto, o Congresso Nacional suspendeu os direitos constitucionais, dando plenos poderes a Vargas.

Quando cansaram do ditador, em 1945, os militares trataram de depor Vargas, forçando-o a assinar um pedido de renúncia. Anos depois, protagonizaram a solução que eles mesmos contrataram na crise que culminou no suicídio de Vargas. Em 1964, todos sabem o que aconteceu.

Tivemos também militares eleitos pelo voto popular —o marechal Hermes da Fonseca e o general Eurico Gaspar Dutra—, e muitos outros foram candidatos antes de 1964, com grandes chances de vencer os pleitos: o brigadeiro Eduardo Gomes contra Vargas em 1950, o general Juarez Távora contra JK em 1955, o marechal Henrique Lott contra Jânio Quadros em 1960.

Mas depois da Constituição de 1988, a democracia brasileira parecia ter, de fato, delimitado o papel das Forças Armadas no Estado brasileiro e livrado o país do arbítrio e do vale-tudo que sempre acompanhou a política nacional.

Ocorre que, na última década, elas saíram da caserna com força e começaram a ditar novamente os rumos do país. Começou com o presidente Michel Temer, segundo declaração própria de que manteve estreitos contatos com os militares antes do impeachment de Dilma Rousseff.

Poucos anos antes, a Comissão Nacional da Verdade (2011-2014), instituída pela então presidente, havia investigado as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos entre 1946 e 1988. As Forças Armadas apareceram com frequência durante a investigação, e tudo isso talvez tenha precipitado certa animosidade.

Foi assim que retornaram, seja no tuíte do general Villas Bôas, evocando-se como porta-voz dos “cidadãos de bem” antes do julgamento do habeas corpus de Lula no STF, em 2018, até o papel que tiveram na eleição do capitão reformado, na posterior ocupação de mais de 6.000 cargos civis no Executivo e na gestão desastrosa da pandemia.

As instituições, garantem os chefes dos Poderes da República, continuam a funcionar. Talvez se pareçam mais com as geringonças que cuspiam fumaça na praça dos Três Poderes ou a “democracia relativa” a que se referiu o general Figueiredo nesta Folha em 1978.

Uma dica de leitura para quem quer compreender a história brasileira: "Brasil, uma Biografia", de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling.

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