Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior
Descrição de chapéu desmatamento

Temos enfrentado silenciosamente um morticínio de árvores

500 milhões desses seres foram derrubados na Amazônia em 2021, e não escuto nenhum lamento

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Dois momentos na última semana me fizeram refletir sobre minha vida com as árvores: ver a fotografia do Patriarca, um jequitibá-rosa de 600 anos que vive no Parque Estadual Vassununga, em Santa Rita do Passa Quatro (SP), e a Festa Literária Internacional de Paraty dedicada às plantas.

Sempre tive afeição por árvores, pela vida de outras espécies. Onde morava com minha família, durante minha infância, em um vale entre os bairros do Engenho Velho de Brotas e o Engenho Velho da Federação, em Salvador, havia pitangueiras, mangueiras e amendoeiras ao redor do pequeno edifício.

Lembro-me exatamente do sabor das pitangas e das mangas, muitas vezes consumidas verdes porque na infância há pressa: pressa para crescer e viver. Não havia tempo de esperar uma fruta amadurecer. Nessa disputa com o tempo, era preferível comê-las verdes antes que algum animal, pássaro ou morcego, se antecipasse à nossa vez.

A amendoeira tinha folhas grandes e copa frondosa, que fazia jus a outro de seus nomes: chapéu de sol. Era fonte de uma sombra sempre bem-vinda para que as crianças se abrigassem do sol com bolas de gude e futebol de botão.

Nessa cidade tropical, essa era a única espécie, de que me recordo, a perder as folhas na estação chuvosa, que é menos quente que o resto do ano. Secas, elas cobriam o chão e faziam um som muito peculiar ao se quebrar sob nossos pés descalços. Era o anúncio de que folhas novas, verdes e brilhantes despontariam nos galhos, anunciando a chegada do verão em pleno setembro.

Anos mais tarde, e sendo empurrado para lugares cada vez mais longe do centro por causa da alta dos aluguéis, fomos morar numa pequena casa com dois canteiros. Nela, me apossei dessa fração de terra, como se fosse o que realmente interessava.

Ali, talvez tenha plantado minha primeira árvore, um pinheiro-tuia. Longe de ser uma espécie nativa, a muda chegou sem nenhuma preocupação particular, apenas pelo que ela era: um ser vivo. Plantei também laranjeira e pitangueira que deram frutos. Mais tarde, acrescentei uma acácia-pingo-de-ouro. Todas elas, em suas medidas, abraçavam a pequena casa. Faziam sombra nos dias de grande calor. Atraíam abelhas, joaninhas e pássaros que nos acordavam com seus sons ainda muito cedo.

Quando o pinheiro-tuia completaria duas décadas e já havia ultrapassado a cumeeira da casa, começamos a ter problemas com suas raízes. Uma fenda se abriu na parede da sala, e por mais que a reparássemos, ela voltava a arrebentar. Nessa batalha pela sobrevivência, a árvore avançava sobre o terreno e o canteiro estreito já não era mais suficiente para suprir suas necessidades.

Chegávamos a uma encruzilhada e não havia escolha. Depois de ouvir os trabalhadores do bairro, habituados a problemas dessa natureza, decidiu-se pela remoção da árvore.

O canteiro não ficou vazio. Voltei a plantar, dessa vez murtas, flores perfumadas que atraíram borboletas, abelhas e toda sorte de insetos. Suas raízes ainda convivem bem com a casa sem ameaçar sua estrutura.

Mas o que eu quero dizer é que a árvore que se foi era alguém da família, alguém muito próximo. Alguém com personalidade própria, que abraçava a casa e assim nos abraçava também. No dia de sua morte, eu saí, porque não suportaria vê-la morrer.

Mas isso não me livrou do luto e de todas as dores que se seguem à morte de alguém a quem estamos ligados. Passei pelo canteiro por muitos dias sem conseguir olhar diretamente para o vazio que ficou. À noite, as luzes dos postes adentravam a casa de uma maneira muito diferente. De dia, o sol se tornou tão opressor que meu luto foi se tornando branco e marcado por aquele incômodo nos olhos.

A luz foi revelando manchas e rachaduras, os detalhes que não percebíamos porque a árvore e sua onipresença nos poupava da deterioração habitual. A dor desse luto foi se tornando uma dor quase física. Os que já a sentiram sabem do que estou falando.

Na Salvador da minha infância, não era difícil ver pessoas reverenciando árvores como verdadeiros deuses. As gameleiras, que já foram abundantes, representam o orixá Tempo, Iroko, espírito ligado à ancestralidade. Ainda hoje não é raro ver árvores envolvidas em tecidos brancos, os ojás, para demarcar sua natureza divina. Mas a cidade, como muitos outros lugares, tem visto suas deusas-árvores desaparecerem pela forma predatória com que nossa espécie decidiu viver sobre a Terra.

Quinhentos milhões de árvores em 2021, somente na Amazônia, é o número desse outro morticínio que temos enfrentado silenciosamente. E pela morte desses seres não escuto nenhum lamento.

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