Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Itamar Vieira Junior

Exploração de trabalhadoras domésticas revela racismo estrutural

'Racismo reverso' e outras falsas polêmicas são fruto de negacionismo que ganha palco com bênção da imprensa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Triscila Oliveira e Leandro Assis, ambos chargistas deste jornal, criaram uma série de quadrinhos, durante a pandemia, que virou sensação entre os leitores: "Confinada", lançado no final do ano passado pela editora Todavia.

Com traços inconfundíveis e um roteiro vibrante, a história mostra a rotina de uma trabalhadora doméstica, Ju, e sua empregadora, a influenciadora digital Fran, durante o primeiro ano da pandemia do coronavírus. Estamos no século 21, mas as relações de trabalho no ambiente doméstico remontam ao Brasil colonial.

Logo no início do livro, a pandemia eclode. A classe média empregadora pode ficar em casa e se divide entre a quarentena e o negacionismo; as trabalhadoras domésticas precisam fazer quarentena com os patrões porque seu trabalho é considerado atividade "imprescindível".

Elas são obrigadas a se separar das famílias para não perder o emprego; a jornada de trabalho sai do controle e se torna "dedicação exclusiva". Ju passa a questionar a exploração a que está submetida, reflexo das mudanças sociais em curso.

Fran e Ju protagonizam uma velha história de exploração conhecida por muitos brasileiros e que remonta aos séculos de existência deste país. Quem de nós já não pôde observar empregadas uniformizadas carregando compras, cuidando de crianças em locais públicos ou teve alguém da família, amiga ou conhecida trabalhando na mesma condição? Quantas referências da antiga escravidão se refletem nesta relação de trabalho? Histórias de violência, racismo e desigualdade de classe.

Nos últimos anos, surgiu uma mínima rede de proteção social e avanços, como a promulgação da emenda constitucional 72, que estabeleceu a igualdade de direitos entre os trabalhadores domésticos e os demais. Ainda há muito por fazer, principalmente quando se trata de promover a inclusão de trabalhadores que vivem na informalidade, além de coibir formas de exploração piores, como a escravidão.

Não por acaso, em 2021, quase 2.000 trabalhadores foram resgatados, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência, em condição "análoga à escravidão". O termo é um eufemismo que merece ser abandonado: trata-se de novas formas escravidão.

De 2017 a 2021, 38 mulheres foram resgatadas de ambientes domésticos, onde viviam escravizadas. Um número que por si só causa revolta, mas sabemos que é a ponta do iceberg. Muitas foram retiradas da família ainda adolescentes e passaram suas vidas trabalhando para uma classe incapaz de se servir de um copo de água sem a ajuda de outra pessoa.

Nos últimos anos, um dos casos mais emblemáticos que veio a público foi o de Madalena Gordiano, escravizada desde os 8 anos de idade. Ela teve o trabalho explorado em uma "casa de família" em Patos de Minas, Minas Gerais. Lavou, passou, cozinhou e limpou por quase 40 anos, sem direito a salário, folga e férias.

Viu-se impossibilitada de estudar e obter qualquer formação, o que contribuiu certamente para que vivesse por tantos anos em situação de extrema degradação. Por fim, foi resgatada pelo Ministério do Trabalho e tem travado na Justiça uma batalha em busca de reparação.

Nesta semana, veio a público uma história semelhante: uma mulher que vivia desde os 12 anos na casa de uma família em Mossoró, no Rio Grande do Norte, sem qualquer direito trabalhista. A operação de resgate envolveu o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União e pela Polícia Federal.

O Brasil é o país com maior contingente de trabalhadoras domésticas do mundo, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Em sua grande maioria, elas se declaram negras (68%). Em 2019, mesmo após a promulgação da emenda constitucional 72, menos de um terço tinha registro em carteira, de acordo com dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua).

Um dado que revela que o pacto social racista, que existe desde os tempos coloniais, continua vivo, mesmo após mais de um século da abolição da escravatura. É o racismo estrutural permeando as práticas históricas e interpessoais brasileiras.

Falsas polêmicas como a do "racismo reverso" ou a de que "não existe racismo estrutural no Brasil" são frutos dessa corrente negacionista que sempre existiu e que ganhou novo fôlego na era digital —vide o exemplo do terraplanismo. Nos últimos anos, essas mesmas falsas polêmicas têm ganhado palco e holofote, inclusive com as bênçãos da imprensa.

Precisamos estar atentos para não nos enredarmos em armadilhas. O racismo provoca distrações, já dizia Toni Morrisonlembrada aqui há alguns dias por Djamila Ribeiro—, para que não façamos o nosso trabalho e dispersemos tempo e energia explicando a nossa razão de ser.

Ju, personagem de "Confinada", não se distrai. A consciência que cria sobre o mundo à sua volta a leva para um momento novo. Por isso, sejamos abolicionistas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.