Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior
Descrição de chapéu clima mudança climática

Sofrimento em Petrópolis deveria romper nossa apatia com mudanças climáticas

Se elegermos governos que sabotam nossas vidas, teremos o futuro sequestrado

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Não sei você, leitor, mas há momentos que sinto vontade de me proteger das notícias que nos chegam todos os dias. Na era da informação, elas podem ser acessadas de qualquer lugar e se encontram, literalmente, ao alcance de nossas mãos. Vantagens e desvantagens da tecnologia.

Mesmo que a gente resolva não ter acesso às notícias durante um ou dois dias, certamente haverá um familiar ou um amigo para compartilhar matérias que consideram importantes, e nos levar involuntariamente a querer nos informar, criando um ciclo de atenção ou dispersão, como queiram chamar, sem fim.

Bombeiros procuram vítimas de deslizamento de terra em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro - Mauro Pimentel - 19.fev.22/AFP

Quando escrevo "me proteger das notícias", não quero pregar a necessidade de viver alienado. Talvez seja uma convocação para refletirmos a impossibilidade de acompanhar e saber sobre tudo o que ocorre à nossa volta.

Sem contar no estado mental de cada pessoa, envolvida com problemas da sua esfera doméstica e comunitária, aos quais muitas vezes se sobrepõem às demandas das diversas escalas: do país, das regiões e do mundo.

Por isso, tardei a ler e buscar informações sobre a tragédia que se abateu sobre Petrópolis. Ao saber, meu primeiro sentimento foi de revolta. Uma tragédia anunciada e sobre a qual nada fizeram. Não se tratava de uma catástrofe espontânea, ocorrida sem que fosse possível prever.

Há pouco mais de dez anos, um evento da mesma magnitude devastou a região serrana do Rio de Janeiro, incluindo o município de Petrópolis. O saldo: mais de 900 mortos e de 30 mil desabrigados. Mortes que significaram pouco ou nada para os gestores e formuladores de políticas públicas. Se tivessem despertado compaixão e senso de humanidade, é bem provável que a tragédia atual fosse evitada.

Foi assim que, dias depois, me senti preparado para me informar. As notícias se repetem: há as explicações técnicas e científicas, há as desculpas do poder público para explicar o inexplicável, há até mesmo a descoberta de que os descendentes da família imperial —a monarquia foi extinta há 133 anos— recebem o laudêmio, cobrado pela utilização de terras sob seu domínio direto.

Mas me interessa mais a escala do humano, dos seres, de como pessoas, como eu e vocês, atravessaram os eventos. A avalanche de lama soterrou centenas de casas, vidas e histórias. Famílias, pessoas que tinham vivido o mesmo drama de 2011, voltaram a perder outros familiares, vizinhos e amigos.

Entre tantas histórias trágicas, impossíveis de se recontar neste espaço tão exíguo, está a de Alessandro Garcia, professor e quadrinista. Ele perdeu a esposa, os dois filhos, os sogros, a casa. A devastação percorreu ruas inteiras e trouxe perdas incalculáveis, sobretudo, de vidas.

Acessar a tragédia pela escala do humano é importante para que possamos atravessar a profusão de notícias, que cumprem a função de informar, sem perder a dimensão da existência.

Recordei que, certa vez, conversei com pessoas de uma comunidade que reivindicava a posse da terra onde moravam havia décadas. Quis saber, de maneira subjetiva, o que os habilitava a receber o domínio definitivo do imóvel. Eles me responderam: "nós nascemos e sofremos aqui".

Não foram as festas, os casamentos ou mesmo o trabalho que os tornaram uma comunidade com laços comuns. Foi o sofrimento, sentimento que tentamos evitar sempre que podemos, mas que pode nos dar a dimensão da vida —e isso os tornava detentores daquele direito.

O sofrimento de Garcia e tantos outros deveria nos tirar deste lugar apático em relação às mudanças climáticas e à falta de políticas para mitigar o que está por vir. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, publicado nesta semana, as desigualdades já afetam quase metade da população do planeta.

O Brasil integra a área altamente exposta às mudanças, e o caso de Petrópolis, do sul da Bahia e de tantos outros lugares dão conta de que os impactos delas são percebidos pela população desigualmente. A vulnerabilidade social nos indica quem são as prováveis vítimas da injustiça climática.

Mais importante é constatar: não haverá mudanças nesse cenário se não houver engajamento da sociedade. Se aguardarmos pacientemente a iniciativa do poder público ou, pior, elegermos governos, como o atual, que sabotam nossas vidas, teremos o nosso futuro sequestrado.

O nosso tempo é implacável: a tragédia de Petrópolis já foi eclipsada pela guerra na Ucrânia.

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