Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Itamar Vieira Junior
Descrição de chapéu machismo

Aborto é assunto para homens?

Em 'O Acontecimento', Annie Ernaux nos faz refletir sobre a condição da mulher sem direito ao próprio corpo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em "O Acontecimento", lançado recentemente pela editora Fósforo, Annie Ernaux narra a experiência de um aborto clandestino na França. Em 1963, Ernaux era uma jovem estudante universitária e conhece o calvário em busca de apoio e conforto para interromper uma gravidez indesejada.

A leitura nos atravessa como uma experiência intensa –impossível não sentir o nó na garganta. Como marca, fica a profunda solidão da personagem/autora, gerada, sobretudo, pelo silêncio dos que se recusam a falar sobre aborto. Um interdito aparentemente pactuado por quase todos à sua volta.

A escritora frances Annie Ernaux durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no México - Ulises Ruiz - 4.dez.19/AFP

Médicos lhe dão as costas, amigos somem e o namorado parece não se importar se a parceira conseguirá ou não a interrupção. Ela não pôde contar nem mesmo com os pais conservadores, residentes numa pequena cidade no interior do país. Resta-lhe apenas prosseguir com seu objetivo e torcer para permanecer na estatística das sobreviventes.

Quem conhece a literatura de Ernaux sabe que ela parte da esfera individual para refletir o coletivo. "Eu estabelecia confusamente uma ligação entre minha classe social de origem e o que estava acontecendo comigo", escreve em determinado trecho.

Descendente de uma família de operários e pequenos comerciantes, ela escapa "da fábrica e do balcão" ao ingressar em um curso superior. Mas esse ingresso não altera a fatalidade da "transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, um emblema". A gravidez indesejada era a marca do "fracasso social", e o aborto só seria legalizado em seu país uma década depois. A França de "O Acontecimento", quase 60 anos atrás, poderia ser o Brasil de hoje.

O evento marcou Ernaux tão profundamente que ela só conseguiu escrever sobre o tema 40 anos depois. Era muito provável que uma narrativa dessa natureza pudesse suscitar reflexões éticas e morais importantes a respeito do começo da vida humana. Mas em nenhum momento a autora parece se importar com o juízo que farão de seu ato.

O que está posto é o direito ao corpo. Poder dispor da própria vida, não como mero repositório da genética de um homem com o objetivo de gerar descendentes. Até mesmo porque os homens já "abortam", podemos concordar. O abandono paterno é um aborto simbólico.

Homens não renegam apenas a paternidade de um embrião, como a mulher faz ao decidir sobre a interrupção da gestação. Eles se esquivam da paternidade de um ser humano com nome e corpo, habitante do mesmo mundo, não um aglomerado de células que um dia pode se tornar uma vida. Ainda que os perfis das famílias estejam se diversificando ao longo do tempo, o abandono paterno é capaz de decretar a morte social de qualquer pessoa.

No Brasil, segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), quase 170 mil crianças foram registradas sem filiação paterna em 2021. Quando analisados os dois anos de pandemia, esse número sobe para mais de 320 mil.

É possível que os afetados reclamem a paternidade judicialmente, embora se saiba que, na prática, são processos lentos, traumáticos e que quase nunca se revertem na assistência econômica e afetiva necessária à criança. Por outro lado, o aborto clandestino continua a ser uma das principais causas de mortalidade materna e, no Brasil, afeta, sobretudo, mulheres negras e pardas.

O movimento de mulheres Marea Verde (Onda Verde) trouxe mudanças históricas à América Latina e alterou a legislação em países como Argentina e Colômbia. Houve avanços também na Guiana, no México e em Cuba.

No Brasil da "Idade Média", a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos agiu, segundo reportagem desta Folha, para impedir que uma criança de 10 anos, vítima de abusos, pudesse abortar. Mobilizou uma rede de pessoas contrárias que colocaram vidas —da criança e dos profissionais de saúde— em risco.

E o que esperar de um Congresso formado majoritariamente por homens? Aborto é conversa de homem? Sim e não.

Sim, se você quiser ser um aliado. Se tiver sensibilidade para escutar e compreender as mulheres, vítimas diretas da criminalização do ato. Pode ouvi-las para replicar e defender seus pontos de vista nos espaços adequados, desde que seja convidado.

Não, se você considera que tem direito sobre o corpo alheio e pode decidir por alguém se uma gravidez deve ou não ser interrompida. Ou decidir se uma mulher deve ou não ter atendimento médico adequado e continuar correndo grave risco de morte.

Talvez um bom ponto de partida seja a leitura desse livro, que Ernaux conclui da seguinte maneira: "O verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completa dissolvida na cabeça e na vida dos outros".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.