Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Itamar Vieira Junior

Bruno Pereira escolheu proteger a floresta e suas comunidades

Política de Bolsonaro de 'nenhum centímetro de terra' para indígenas e quilombolas continua a fazer vítimas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quando comecei a trabalhar no serviço público, há quase duas décadas, o fiz movido pela necessidade de ter um emprego. Vivia e vivo em um país eternamente assombrado pelas desigualdades sociais e econômicas.

Havia me preparado durante anos para ser professor, mas quis o destino que fosse trabalhar no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) com trabalhadores rurais no interior do Maranhão. Parti da Bahia carregando incertezas sobre o que me aguardava. Deixava família e amigos para trás e, em contrapartida, desbravava um mundo novo de permanente conhecimento para um jovem que viveu nos limites da periferia de Salvador —mundo que, descobriria mais tarde, era também ancestral.

Agricultores trabalham em terra cedida pelo Incra em Iranduba, no Amazonas - Eduardo Knapp - 19.jan.18/Folhapress

Naqueles primeiros anos, andando por campos afora, encontrei indígenas da etnia guajajara na região de Barra do Corda e quilombolas em Jamary dos Pretos, Turiaçu, norte do estado. Essas experiências me deram a exata dimensão das minhas origens e das histórias que escutava em casa. Era a reprodução do contexto da vida de meu pai até os 15 anos, criado por seus avós agricultores sem-terra, trabalhadores de propriedades alheias.

Durante anos encontrei homens, mulheres e crianças abrigados sob lonas pretas, sem nenhum conforto, à espera da reforma agrária. Naquela paisagem hostil, muitas vezes sob a ameaça dos "donos da terra", compartilhavam entre si tudo o que tinham.

Aos poucos, adentrei um Brasil que habitava meu imaginário tanto pelas memórias narradas pela família quanto pelos livros que me fizeram querer ser escritor: "Vidas Secas", "O Quinze", "Menino de Engenho", "Terras do Sem-fim", "Morte e Vida Severina". Obras escritas e publicadas há 60, 70, 80 anos e que, com uma ingenuidade própria dos jovens, considerava estarem em definitivo no passado.

Mas fui tomado por um sentimento de perplexidade ao encontrar as estruturas de nossas desigualdades tal e qual se apresentavam nos livros. "Rugosidades do espaço", escreveria Milton Santos, carregando a violência do tempo e da história.

Muitas vezes me deslumbrei com a exuberância da paisagem e me perturbei com a descoberta de pessoas fortes —que eram na mesma medida vulneráveis— forjando o dom da vida nas veredas que lhes restavam. Sofri de muitas maneiras e desejei fazer mais.

Muitas vezes, me senti um grão de areia incapaz de transformar o que precisava ser transformado. Sofri por cada um que conheci. Lamentei por mim, por ter escolhido sofrer pelos outros, quando talvez fosse mais fácil seguir em frente fingindo que nada daquilo me dizia respeito.

Quando fiquei preso entre caminhões carregados de madeira em uma estrada na Reserva Gurupi, que ainda hoje continua a ser devastada, tive medo de ser ferido ou morto. Tive medo quando agricultores, que gozavam de certo poder e contrários à legislação ambiental, me ameaçaram com o ultimato para deixar suas terras.

Tive medo quando um fazendeiro descobriu meu telefone e ligou fazendo ameaças veladas caso não deixasse um processo que envolvia sua propriedade. Ou ainda quando precisei notificar um proprietário que, sem contestar, concordou em sair da área que ocupava, mas que não o faria só e "levaria" muitos com eles.

Fui atravessado por essas lembranças enquanto esperava, aflito, por notícias de Bruno Pereira e Dom Phillips, desaparecidos no Vale do Javari. Sentei-me no Odeon, Viena, onde estive a convite para assistir a estreia do espetáculo "Depois do Silêncio", de Christiane Jatahy, adaptação do romance "Torto Arado" e do clássico "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho.

Era o dia da confirmação da morte dos dois ativistas. Na plateia, fui atravessado por uma profunda emoção ao ver imagens de João Pedro Teixeira, dona Elizabeth e quilombolas da Chapada Diamantina interpretando o texto literário que poderia ser muito bem a história de suas vidas.

Pensei em Dom e, especialmente, em Bruno. Tínhamos a mesma idade, a mesma paixão pelo que fazíamos e a compreensão de que, por trás da floresta e das disputas de terras, há vidas em risco.

Disseminadas nos últimos dias, as imagens de Bruno entre os indígenas do Javari mostram um servidor público e sua profunda empatia pelas pessoas por quem trabalhava. Mesmo afastado da Funai (Fundação Nacional do Índio) em razão dos desmandos do atual governo, Bruno escolheu estar entre os indígenas, compartilhando o que sabia para proteger a floresta e suas comunidades.

A política do "nenhum centímetro de terra" para indígenas e quilombolas de Bolsonaro continua a fazer vítimas.

Presto minha solidariedade a todos servidores brasileiros que continuam a atuar diante da inércia do Estado, com o objetivo de sobreviver e reduzir os danos destes anos de assombro.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.