Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior
Descrição de chapéu alimentação

Pensamento de Josué de Castro sobre raízes da fome é mais necessário que nunca

Nova coletânea mostra que ideias do geógrafo continuam inspirando reflexões sobre a insegurança alimentar no Brasil

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Se as ideias dos grandes humanistas não envelhecem, a coletânea "Da Fome à Fome: Diálogos com Josué de Castro" (Elefante), organizada por Tereza Campello e Ana Paula Bortoletto, é a prova. Setenta e cinco anos após a publicação de "Geografia da Fome", os breves ensaios que compõem o livro refletem os desafios para a superação da insegurança alimentar e nutricional no Brasil do século 21.

Por que a fome continua a ser um tema atual? Após anos de políticas públicas exitosas que mitigaram o problema, o Brasil havia conseguido deixar o Mapa da Fome da ONU em 2014, mas, desde 2018, o quadro passou a ser revertido. Por sua vez, a pandemia acentuou o flagelo, que ganhou contornos de tragédia.

Homem usa panela de pressão embaixo de viaduto em São Paulo - Karime Xavier - 18.nov.21/Folhapress

Ao longo dos últimos anos, vimos cenas de filas para recebimento de ossos e pessoas revirando o lixo. Os centros e os semáforos das grandes cidades brasileiras foram tomados por pessoas em busca de algum tipo de ajuda para se alimentar.

No artigo "Por que tantos passam fome no Brasil", publicado nesta Folha em 11 de agosto, Renato Maluf, Ana Segall e Rosana Salles apresentam os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil: 33,1 milhões de pessoas passam fome, e 125,2 milhões vivem algum grau de insegurança alimentar (quase 60% da população).

Como é concebível que um país com um território vasto, fértil e que deve colher cerca de 270 milhões de toneladas de grãos na safra 2021/2022 (1,3 tonelada por habitante) possa ter índices tão alarmantes?

O pensamento de Josué de Castro é capaz de iluminar o debate: a fome não é natural nem inevitável. "A fome e a pobreza", escreve Tereza Campello, "precisam ser lidas como problemas políticos, não somente socioeconômicos". A certeza sobre a natureza do fenômeno é o paradoxo de o Brasil ser um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo enquanto grande contingente de pessoas vive em insegurança alimentar.

O amplo painel apresentado no livro toca em alguns fatores-chave que contribuem para a manutenção da contradição: a desigualdade social intransponível promove distribuição desigual de acesso a alimentos; a manutenção e o aprofundamento dos padrões de concentração fundiária distribuem com desigualdade os ativos e agravam a injustiça climática; o Estado não tem sido ator fundamental na execução e na regulação de políticas para garantir o direito à alimentação (sim, o mercado não o fará por benevolência); a falta de participação da sociedade civil no monitoramento da aplicação das políticas públicas; ações emergenciais não substituem políticas de Estado.

O dilema do "pão ou aço", posto em debate por Josué de Castro na década de 1940, se tornou o dilema do "pão ou commodity". Um dos ensaios resgata uma frase da economista Maria da Conceição Tavares, "o povo não come o PIB", corroborada pela constatação de que o Brasil é o maior exportador agrícola e de carne do planeta com uma sociedade predominantemente urbana. Colheitas recordes para gerar commodities sem reversão da fome são "abundância como causa da penúria".

Daí também a necessidade de uma ação integrada, como escreve José Graziano da Silva quando resgata um texto de Josué de Castro, ao constatar que a fome "não é uma moléstia a ser combatida isoladamente pela ação fulminante de um remédio específico [...]. As raízes desse problema, que só poderá ser extirpado revolvendo-se, profundamente, resíduos dos tempos do feudalismo e da escravidão".

A solução para o problema não está apenas na distribuição de alimentos. Deve passar também por mudanças profundas nos paradigmas econômicos e sociais atuais.

Algumas ideias explanadas nas obras de Josué de Castro e compiladas pelo geógrafo Manuel Correia de Andrade apontam as estruturas basilares para uma mudança efetiva: uma ampla reforma agrária para desconcentrar a aberração de latifúndios nas mãos de poucos, ou seja, quem produz alimentos para a mesa dos brasileiros são os pequenos e médios agricultores; educação para fortalecer a cidadania e a ação diante das desigualdades que perpetuam a fome; a redução das desigualdades regionais no Brasil e no mundo.

Elaine Azevedo, em seu ensaio intitulado "Colonialidade alimentar", traz como epígrafe uma frase de Carolina Maria de Jesus: "A escravatura atual chama-se fome". Mais real, impossível. Essa constatação nos mostra também que, se a fome continua presente, o pensamento de Josué de Castro permanece mais necessário que nunca.

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