Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky

Amor e ódio, Moscou e Pequim

A globalização inviabiliza atritos entre potências na lógica da Guerra Fria

Enquanto Donald Trump promove mais uma guinada à direita, povoando a Casa Branca com ícones do unilateralismo, como o novo secretário de Estado e o conselheiro para assuntos de segurança nacional, Xi Jinping e Vladimir Putin aceleram projetos de concentração de poder, trocam afagos após reeleições e bradam aprofundar laços bilaterais. Cálculos geopolíticos buscam diagnosticar se Moscou e Pequim podem protagonizar sólida aliança, baseada sobretudo no enfrentamento a Washington, em bipolaridade a lembrar episódios da Guerra Fria.

Na segunda-feira passada, Xi e Putin conversaram ao telefone. Trocaram salamaleques sobre as reeleições, ocorridas no mesmo final de semana. No sábado, por unanimidade, o Parlamento endossou mais um mandato presidencial ao dirigente chinês, enquanto, no domingo, o mandatário do Kremlin prolongou, com 76% dos votos, a permanência no poder até 2024.

Xi, no diálogo telefônico, descreveu o momento das relações entre os dois países como “o melhor da história”. Arautos do otimismo sino-russo falam da crescente frequência de encontros entre presidentes, de atuações sincrônicas em fóruns internacionais e do fortalecimento de vínculos econômicos, como comércio e investimentos.

Moscou e Pequim, ao colecionarem turbulências nas relações com EUA e países europeus, tornam-se aliados inerciais. Putin, por exemplo, às turras com a União Europeia na disputa por zonas de influência, celebrizou a expressão “pivô para a China”, como rótulo de uma política externa em busca de alternativas a pressões isolacionistas.

A aproximação euroasiática, no entanto, esbarra em obstáculos para eventual reedição da aliança dos anos 1950, quando stalinistas e maoistas superaram desconfianças históricas para, em nome do jogo ideológico da Guerra Fria, construir um eixo vermelho. A “fraternidade anti-imperialista”, no entanto, durou apenas cerca de uma década, e rivalidade pela liderança do campo comunista voltou a fazer de Moscou e Pequim inimigos figadais. 

Ao longo da história, chineses e russos protagonizaram mais capítulos de disputas do que de cooperação. Já no século 17, exploradores czaristas, rumo ao Extremo Oriente, enfrentaram tropas da dinastia Qing, em conflito encerrado com o Tratado de Nerchinsk, em 1689.

A decadência chinesa no século 19 permitiu a Moscou abocanhar territórios orientais, na região do rio Amur, em conquista formalizada com o Tratado de Aigun, de 1858. 

Tensões e reivindicações históricas ainda assombram a área de fronteiras, palco de enfrentamentos militares, em 1969, entre a URSS de Brejnev e a China de Mao.

Na Ásia central, Rússia e China alternam, ao longo da história, embates e colaboração. 

Cicatrizes do passado, portanto, sabotam a parceria Xi-Putin, impedindo a repetição da “camaradagem dos anos 1950”. Além da história, o presente também impõe limites à aliança. 

A globalização, com a inevitável interdependência econômica, inviabiliza atritos entre potências modelados pela lógica maniqueísta da Guerra Fria.

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