Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky

Brasil ressuscita a Guerra Fria

Polarização da campanha eleitoral é viagem desanimadora no túnel do tempo

Montagem com foto de Fernando Haddad e Jair Bolsonaro - Rodolfo Buhrer/Reuters e Nelson Almeida/AFP

Em momentos do atual debate político no Brasil, o calendário parece indicar 8 de novembro de 1989, última dia da Guerra Fria. Na data seguinte, o ícone principal daquele período histórico, o Muro de Berlim, deixaria de dividir o mundo entre blocos soviético e americano.

Cinco décadas de bipolaridade, de maniqueísmo alicerçado em comunismo versus capitalismo, de embate feroz entre direita e esquerda, se diluíam, para ascensão de uma era desenhada por distintos contornos ideológicos, com fronteiras menos nítidas entre ideários clássicos do século 20.

No entanto, episódios recentes do enfrentamento político brasileiro alimentam a sensação de embarque num túnel do tempo. A Guerra Fria, muitas vezes, ressurge. Visões ultraortodoxas, à esquerda e à direita, viralizam em mensagens de Whatsapp; nas redes sociais, proliferam textos e teorias que copiam a guerra de propaganda dos tempos áureos da disputa entre EUA e URSS.

Os termos esquerda e direita, como na época da bipolaridade, são lançados aos quatro ventos. Não se trata de negar a sobrevivência de olhares ideológicos apoiados em abordagens tradicionais, frequentes em décadas passadas. Claro que, em alguma medida, norteiam ainda ações políticas. 

No entanto, o cenário pós-Guerra Fria embaralhou cartilhas e colocou em xeque dogmas da lógica maniqueísta, predominante no mundo construído a partir do final dos anos 1940.

A China, principal fenômeno transformador do cenário internacional dos últimos 40 anos, se move com uma lógica à esquerda ou à direita?

Como encaixar, nas prateleiras ideológicas em voga no Brasil de hoje, o Partido Comunista chinês e sua trepidante revolução capitalista?

A Rússia contemporânea também desarranja lógicas binárias. Vladimir Putin lamenta o fim da União Soviética, classificando-o de "maior desastre geopolítico do século 20". Mas recebe, no Kremlin, Marine Le Pen, diva da extrema direita global e aliada na empreitada de enfraquecer a União Europeia, adversária geopolítica do Kremlin.

Na era Angela Merkel, a Alemanha vive o terceiro mandato (após a reunificação) da "grande coalizão", aliança entre os rivais históricos CDU (centro-direita), da primeira-ministra, e o SPD (centro-esquerda).

Em fevereiro, começou nova fase do casamento de forças políticas que, na Guerra Fria, recorriam a fontes ideológicas às vezes imiscíveis.

Em Portugal, o governo de socialistas e aliados de esquerda, batizado de "geringonça", coleciona elogios de instituições como o FMI, graças a taxas vigorosas de crescimento econômico. O primeiro-ministro

António Costa, no poder desde 2015, questiona a política de austeridade, de corte de gastos públicos e investe em programas sociais, mas embarca em reformas modernizadoras e desburocratizantes, para atrair investimentos e estimular exportações.

O equatoriano Lenín Moreno é outro a confundir leituras estanques, feitas sob a ótica da Guerra Fria.

Tomou posse em 2017, com a aura de sucessor de Rafael Correa, destaque do esquerdismo latino-americano. No entanto, gradativamente, o novo presidente do Equador desmonta heranças do chavismo de seu ex-padrinho político.

Exemplos de nuances ideológicas se multiplicam, embora ofuscadas pelo momento histórico e global de polarização.

O Brasil protagoniza, nesta campanha eleitoral, viagens desanimadoras pelo túnel do tempo, ao disseminar argumentos e fake news de um mundo à la Guerra Fria, dividido entre o preto e o branco. No século 21, o leque de cores é caleidoscópico.

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