Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky

Homenagem a roqueiro soviético e fala de Gorbatchov sobre Belarus remetem aos anos 1990

Banda Kino, que simboliza a era da perestroika, vai se reunir 30 anos após morte de seu líder

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O vídeo preencheu a tela do computador. Ecoaram guitarras e sons do rock da perestroika. O clipe notificava o adiamento, para 2021, do show com o reencontro de remanescentes da banda Kino, cerca de 30 anos após a morte de seu líder, Viktor Tsoi.

Motivo da mudança na agenda: a pandemia.

Criada em 1982, a roqueira Kino (cinema, em russo) simboliza a era das reformas de Mikhail Gorbatchov. A morte precoce de Tsoi, em acidente automobilístico, ceifou produção musical responsável por refletir, com precisão artística, angústias e dificuldades da população soviética.

Turistas tiram foto em frente à imagem de Viktor Tsoi em um muro de Moscou
Turistas tiram foto em frente à imagem de Viktor Tsoi em um muro de Moscou - Alexander Nemenov-17.ago.20/AFP


As últimas semanas me ofereceram alusões aos anos 1980 e 1990, talhados pela queda do Muro de Berlim, pelo fim da Guerra Fria e pela desintegração da URSS. Lembrei-me de Tsoi e ouvi Gorbatchov.

Após chegar ao Kremlin, em 1985, Gorbatchov deslanchou reformas batizadas de glasnost, para o campo político, e de perestroika, arquitetada para revitalizar a moribunda economia planificada.

As iniciativas carregavam o objetivo de modernizar e salvar o partido comunista, mas fracassaram. Escancararam a inviabilidade do sistema, aprofundaram a crise econômica e aceleraram o desmonte do regime.

Gorbatchov, embora malsucedido na estratégia doméstica, gravou seu nome de maneira indelével na história do século 20, ao garantir o fim da Guerra Fria e ao defender a cooperação global. Foi agraciado com o Nobel da Paz, em 1990.

Do alto de seus 89 anos, o pai da glasnost se pronunciou recentemente sobre a crise na Belarus, ex-república soviética onde manifestações exigem a renúncia do ditador Aleksandr Lukachenko. Gorbatchov sinalizou apoio aos atos pró-democracia e pediu uma solução interna, sem ingerência estrangeira.

Testemunha do fim da divisão geopolítica do continente europeu nos anos 1980, Gorbatchov advertiu sobre os riscos de a crise bielorrussa corroer ainda mais as relações entre a Rússia, fiadora de Lukachenko, e a União Europeia, interessada na mudança de regime em Minsk.

A opinião de Gorbatchov e sons do grupo Kino se mesclaram em minha mente. A música “Peremen” (mudanças, em russo), composta e celebrizada pelo vocalista Viktor Tsoi, transformou-se em trilha sonora de atos pró-democracia na Belarus, repetindo tradição iniciada há cerca de três décadas, após o surgimento da principal banda da história do rock soviético.

A contestação embalou a carreira de Tsoi. Rotulado pela ortodoxia vermelha como “movimento contrarrevolucionário”, o rock na era Gorbatchov canalizava a indignação dos jovens com o pântano burocrático e autoritário do decrépito sistema soviético.

Em 1987, o cinema oficial da perestroika lançou “Assa”, retrato da debacle soviética. A cena final é antológica. Nela, Tsoi conversa com a funcionária de um restaurante estatal responsável pelos trâmites para sua apresentação noturna aos comensais.

A burocrata, em clássico estilo dos tempos brejnevistas, atormenta o imberbe cantor com pedidos de certificados e autorizações. Tsoi perde a paciência, deixa a interlocutora falando sozinha e junta-se à banda, para entoar, num cântico às reformas, “Peremen”. Sobem então os letreiros finais.

A canção voltou à política em 1991, quando comunistas ortodoxos, num golpe de Estado fracassado, tentaram eliminar a perestroika. Adversários do golpismo usavam alto-falantes no centro de Moscou para espalhar acordes de “Peremen”.

Tsoi, no entanto, não testemunhou aquele momento. Havia morrido em 15 de agosto de 1990.

O filho, Alexander, planejava reunir, em 2020, os remanescentes da banda. Mas as mensagens do inconformismo de Tsoi voltarão aos palcos apenas no próximo ano.

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