Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky

Reminiscências da Belarus

Trabalhos jornalísticos e pesquisas genealógicas levaram a desbravar o país hoje envolto em protestos contra ditadura

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Stepan, o camponês bielorrusso, apontou para o alto da árvore e perguntou: “Está vendo o balanço?”. Respondi afirmativamente. “O primo de seu avô o fez para mim durante a guerra, quando eu era uma criança.”

O rústico brinquedo pendia a uns 5 metros do chão. A altura do galho denunciava as cinco décadas passadas entre sua confecção, durante a Segunda Guerra Mundial, e minha visita, em 1991, à terra natal de meus antepassados, a cidade de Pinsk, porção ocidental da Belarus.

Enquanto acompanho com interesse milimétrico o noticiário sobre protestos contra o ditador Aleksandr Lukachenko, há 26 anos no poder, resgato da memória incursões jornalísticas e genealógicas pela região de onde, nos anos 1920, partiram meus avós paternos rumo ao Brasil.

Dezenas de pessoas estão de pé e de braços dados em uma rua, frente a policiais
Manifestantes fazem frente a policiais em protesto contra o ditador Aleksandr Lukachenko em Minsk, capital da Belarus - 1.set.2020/Reuters

Hábito frequente entre imigrantes judeus, eles resistiam a falar sobre a vida europeia, para evitar lembranças de perseguições e sofrimentos. Preferiam esquadrinhar o futuro.

A Folha me levou a desembarcar, em 1990, em Moscou, como correspondente. Viver num epicentro do universo eslavo aguçou a curiosidade sobre minhas origens. À época, meus avós já haviam falecido. Recorri à pesquisa genealógica.

Depois de voar de Moscou a Minsk, capital bielorrussa, cheguei a Pinsk de carro, acompanhado de meus pais. No trajeto de 302 quilômetros, imaginava, ao observar a paisagem, os encarniçados combates entre nazistas e soviéticos, de décadas atrás.

Cerca de 25% dos bielorrussos morreram na Segunda Guerra Mundial. A população judaica foi praticamente dizimada.

Circulamos por Pinsk, em cuja história pré-guerra os judeus chegaram a responder por 70% de seus habitantes, à procura de sinais de nossa família. Perseguir documentos em cartórios foi em vão, destruídos pela barbárie nazista.

Publicamos foto de meus avós num jornal local, à espera de alguém com recordações dos Spitzcovsky ou dos Lerman, família de minha avó. A intervenção na imprensa não surtiu resultados.

Porém, dias de buscas intensas foram recompensados por poucos, mas emocionantes achados. Encontramos, depois de bater à porta de várias casas, moradoras do entorno de Pinsk de idade avançada, com lembranças vagas de nossos parentes, assassinados no Holocausto.

Mas era Stepan quem guardava mais recordações. De família cristã e órfão, foi acolhido por um primo de meu avô, Abraham, cuja casa encontramos preservada, com marcas de batalhas da Segunda Guerra Mundial.

Convocado pelo Exército Vermelho, Abraham teve de deixar a cidade natal, lutou na histórica batalha de Stalingrado e, ao final do conflito, imigrou para Israel, onde faleceu anos atrás. Nunca conseguiu rever Stepan, separados pelos muros da Guerra Fria.

Depois da incursão familiar, retornei à Belarus em 1992, cerca de um mês após a desintegração da URSS, para entrevistar o primeiro presidente da era pós-soviética. Stanislav Shushkevich me recebeu no gabinete decorado com a bandeira vermelha e branca, símbolo do nacionalismo bielorrusso e estandarte das manifestações contra Lukachenko, hoje aliado de Vladimir Putin.

Na conversa sobre laços com o Kremlin, perguntei a Shushkevich se visões de um império russo correspondiam a conceitos ultrapassados. “Não”, retorquiu ele. “Nossa história mostra que hábitos e métodos imperiais existiram durante o regime bolchevique e durante o czarismo.”

Despontam como inquebrantáveis os vínculos históricos, culturais e geográficos entre Minsk e Moscou. Mas essa relação de séculos não significa que a Rússia possa ditar os rumos da jovem República da Belarus. Resta, portanto, o diálogo.

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