Com a cassação de quatro parlamentares de Hong Kong acusados de defender a independência da região, o dirigente chinês Xi Jinping ataca um dos principais fantasmas a assombrar seu reinado, o da perda territorial.
Na bússola do nacionalismo a orientar a China, a “recuperação de fronteiras da pátria” tornou-se pedra de toque da cartilha dos mandatários de Zhongnanhai, versão pequinesa da Casa Branca washingtoniana.
Invasões ocorridas sobretudo nos séculos 19 e 20 deixaram rastros de destruição, massacres e privações territoriais. O colonialismo britânico abocanhou Hong Kong em 1842, o militarismo japonês conquistou Taiwan em 1895 e, na Segunda Guerra Mundial, perpetrou atrocidades inomináveis.
A lista de avanços estrangeiros contra a China abarca outros episódios lamentáveis. Portugueses, franceses e alemães também deixaram digitais em investidas a se aproveitar de momentos de debilidade do “Império do Meio”, como se autodenomina o país mais populoso do planeta (Zhongguo, em chinês).
Ao deslanchar as reformas econômicas em 1978, o comunista Deng Xiaoping trocou o combustível ideológico do partido. Falar em “paraíso proletário”, slogan da era maoísta, perdia sentido com a adoção de mecanismos como propriedade privada, consumo de luxo e investimento estrangeiro.
Na era Deng, o nacionalismo transformou-se em alicerce central do cardápio ideológico. O Partido Comunista abandonou o “sonho vermelho” e abraçou a missão de recuperar, para o país, o status perdido de potência global.
Virou peça-chave desse enredo a reconquista de regiões capturadas por invasores. Em 1984, Deng acertou com o Reino Unido a devolução de Hong Kong, realizada em 1997, e, em seguida, o patriarca negociou com Portugal o retorno de Macau, consumado em 1999.
No mapa da “restauração das fronteiras da pátria”, o PC inclui, com destaque, Taiwan, ilha onde se refugiaram em 1949 os nacionalistas derrotados pelos maoístas na guerra civil. A divisão sobrevive como uma das últimas heranças da Guerra Fria.
“Iremos de forma inabalável promover a reunificação pacífica da pátria-mãe de acordo com o princípio ‘um país, dois sistemas’, garantindo um retorno tranquilo de Macau e eventualmente resolvendo a questão de Taiwan”, discursou, na cerimônia de devolução de Hong Kong, o dirigente chinês Jiang Zemin, a 1º de julho de 1997.
Deng havia morrido em fevereiro daquele ano. Seus sucessores herdaram, portanto, a tarefa de completar a “reunificação histórica”, trazendo solo taiwanês novamente ao controle de Pequim.
Se “falta apenas Taiwan”, o brotar de sentimentos separatistas em Hong Kong significa nova e intolerável ameaça para o projeto territorial dos mandarins de Zhongnanhai. Ao ejetar parlamentares do Conselho Legislativo honconguês, Xi Jinping sinaliza mão de ferro para enfrentar estocadas independentistas.
De quebra, a sinalização também serve para a questão taiwanesa. Auxilia Pequim a aumentar pressão sobre a “ilha rebelde”.
Na escalada de tensões entre EUA e China, o presidente Donald Trump encontrou no crescente apoio a Taiwan um caminho para pressionar Xi Jinping. Importante, no entanto, os estrategistas republicanos e o futuro governo Biden entenderem o alcance do tema territorial para os herdeiros de Deng e não subestimarem a hipótese de a contenda deflagrar um trágico conflito bélico.
A China ameaça invadir Taiwan, caso a ilha abandone formalmente o desejo de uma eventual reunificação. Xi Jinping jamais toleraria entrar para a história como o sucessor de Deng Xiaoping a perder território, em vez de fazer avançar a missão de “restaurar as fronteiras da pátria”.
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