Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Telefonemas do fim do império soviético

Há 30 anos, diálogos de Ieltsin e Gorbatchov com Bush evidenciaram desejo de aprofundar laços bilaterais

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Um telefonema de Moscou interrompeu, em 1991, as celebrações de Natal da família Bush, em Camp David. Do outro lado da linha, em busca do colega norte-americano, estava o presidente soviético, Mikhail Gorbatchov, menos de duas horas antes de renunciar, deixar o Kremlin e sacramentar o fim da URSS, um dos personagens centrais do século 20.

Bush agradeceu a deferência. Pela segunda vez, naquele mês fatídico para o império bolchevique, o presidente norte-americano era tratado com zelo por um interlocutor russo. No dia 8, havia recebido uma chamada de Boris Ieltsin, para saber, antes mesmo de Gorbatchov, da desintegração soviética.

O líder soviético Mikhail Gorbatchov, faz ligação do Mobira Cityman, primeiro telefone celular da Nokia. (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O líder soviético Mikhail Gorbatchov


"Hoje, um evento muito importante ocorreu em nosso país, e quero eu mesmo lhe informar, antes que saiba pela imprensa", disse o líder russo. No começo da conversa, o relógio do Salão Oval da Casa Branca apontava 13h08. Era um domingo.

Ieltsin estava ladeado por líderes da Belarus e da Ucrânia, então unidades, assim como a Rússia, da URSS. O país multiétnico era formado por 15 repúblicas; na prática, províncias controladas por um Kremlin centralizador e ditatorial.

Nos anos 1980, evidenciou-se o colapso do sistema. Gorbatchov tentou salvá-lo, com reformas responsáveis por inédita abertura política e por trágica crise econômica, a maior desde a Segunda Guerra Mundial.

Fortalecidos com promessas de "terapias de choque" na economia e com discursos separatistas, os líderes russo, belarusso e ucraniano se reuniram em Belarus e anunciaram, a 8 de dezembro de 1991, o fim da URSS. Passariam a não mais reconhecer o poder central.

"Constatamos razões objetivas para que a formação de Estados independentes se transformasse numa realidade", ponderou Ieltsin no diálogo com Bush. Depois de detalhar a iniciativa, o líder russo observou: "Preciso lhe dizer confidencialmente, o presidente Gorbatchov não sabe desses resultados".

Segundo a transcrição oficial da conversa, disponível na web, Ieltsin emendou, sobre Gorbatchov: "Certamente vamos enviar-lhe de imediato o texto do nosso acordo, pois ele seguramente terá de tomar decisões em seu nível".

Antevia-se, claro, a renúncia gorbatchovista, anunciada a 25 de dezembro de 1991. O Prêmio Nobel da Paz de 1990, adulado no Ocidente sobretudo por esforços para demolir a Guerra Fria, sofria incontornável derrota política.

Nos diálogos de dezembro com os EUA, Gorbatchov e Ieltsin convergiram em dois pontos. Esforçaram-se para desfazer temores sobre controle do arsenal nuclear e enfatizaram desejos de preservar e aprofundar as relações entre Washington e Moscou.

O caso de Ieltsin foi ainda mais emblemático. Antecipar a informação do fim da URSS a Bush embutia, claramente, a oferta de estreitamento de laços entre o Kremlin e a Casa Branca, com o desejo russo de receber urgente apoio norte-americano para a recuperação econômica.

A leitura norte-americana do momento histórico foi distinta. Prevaleceu, entre democratas e republicanos, a desconfiança em relação a líderes russos com novas propostas, mas oriundos do sistema soviético.

Em Washington, a visão correspondia a contribuir para uma "Rússia estável, mas enfraquecida". Em Moscou, desde então, fortaleceu-se a ideia de o flerte com os EUA ter sido um equívoco colossal.

Percepções diferentes de um momento histórico ocorrido três décadas atrás alimentam até hoje a rivalidade russo-americana. Já está na hora, para o bem da estabilidade global, de a Casa Branca e o Kremlin se entenderem, definitivamente, sobre o significado dos estertores do século 20.

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