Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Descrição de chapéu Ásia Rússia

Crise no Cazaquistão expõe legado de 'reformismo despótico' de ex-líder

Nursultan Nazarbaiev frustrou reformistas e implantou cartilha autoritária no pós-União Soviética

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A leitura da violenta crise política no Cazaquistão, ex-república soviética na Ásia Central, oferece um capítulo relevante para compreender o universo pós-URSS, com a transformação de um reformista moderado em um governante despótico.

Nursultan Nazarbaiev, condutor da independência cazaque, cultivava, nos anos 1990, uma imagem de moderação, para, ao longo de quase 30 anos no poder, implementar uma cartilha com nuances de estilo norte-coreano.

Ele comandou a terra natal de 1990 a 2019, quando renunciou. No entanto, indicou o sucessor e guardou o título de "líder da nação" e o controle do Conselho de Segurança —do qual foi afastado em meio à turbulência atual. Pairam dúvidas se a iniciativa corresponde a teatro político ou a efetiva perda de poder.

Pedestres passam por loja destruída na cidade de Almati, no Cazaquistão, após confrontos entre manifestantes e forças de segurança do país - Abduaziz Madiarov - 7.jan.22/AFP

De qualquer maneira, as digitais de Nazarbaiev proliferam pelo vasto país centro-asiático. A capital, conhecida anteriormente como Astana, passou a se chamar Nursultan em 2019, homenagem ao "líder da nação".

Antes de enveredar pelo culto à personalidade, o ex-presidente navegava como ícone da moderação na URSS do início dos anos 1990. Trabalhava, por exemplo, como espécie de mediador entre os principais rivais à época, o vacilante líder soviético Mikhail Gorbatchov, empenhado em salvar apodrecidas estruturas comunistas, e o mercurial Boris Ieltsin, favorável a acelerar reformas e governante da Rússia, maior das 15 unidades a formar o império criado a partir da Revolução de 1917.

Nazarbaiev, a seu favor, exibia sólida carreira nos meandros do sistema soviético, responsável por transformá-lo num típico apparatchik (integrante do aparato partidário). Conhecia profundamente os mecanismos de disputas de poder no PC da URSS.

O duelo Gorbatchov-Ieltsin se intensificou em 1991, e o cazaque, como voz moderada, pregava prudência na crise terminal de uma superpotência nuclear. Conseguia interlocução com o gorbatchovismo e o ieltsinismo. Ieltsin consolidou sua vitória ao anunciar, a 8 de dezembro de 1991, o fim da URSS, ao lado dos líderes separatistas da Ucrânia e da Belarus. Ato contínuo, buscou apoio de Nazarbaiev, a fim de impedir seu alinhamento a eventuais resistências ao Kremlin.

Nos primeiros capítulos da desintegração bolchevique, Nazarbaiev havia se unido a Gorbatchov. Também queria evitar o fim do império, embora defendesse mais autonomia para as repúblicas soviéticas, drenando poder de Moscou. Prevaleceu, no final, a ofensiva de Ieltsin, impulsionada pela trágica crise econômica. O cazaque entendeu a correlação de forças, abandonou o aliado e aderiu à caravana separatista. Argumentou buscar a estabilidade e evitar conflitos.

A 21 de dezembro, em Alma Ata, então capital cazaque, criou-se a Comunidade de Estados Independentes, arquitetada para substituir as estruturas soviéticas, mas sem ganhar relevância até hoje. A foto clássica do evento de fundação enfileira os líderes Ieltsin, o ucraniano Leonid Kravchuk e o belarusso Stanislav Shushkevich. À frente, o anfitrião Nazarbaiev.

Reunião da criação da Comunidade dos Estados Independentes, com os líderes de Ucrânia (Leonid Kravchuk), Cazaquistão (Nursultan Nazarbaiev), Rússia (Boris Ieltsin), Belarus (Stanislav Shshkevich), Armênia (Levon Ter-Petrossian) e Moldova (Mircea Snegur), em reunião em Almati - Shamil Zhumatov - 21.dez.1991/Reuters

O político cazaque consolidava então o rótulo de reformista moderado. Tal opção foi logo abandonada, e o Cazaquistão, assim como vários de seus vizinhos, embarcou numa era de autoritarismo e de culto à personalidade.

"Economia primeiro, democracia depois", sustentava o regime do "líder da nação". Herdeiro dos despotismos czarista e comunista, o espaço pós-soviético transformou-se, embora haja exceções, em terreno fértil para a proliferação de autocracias do século 21.

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