Jairo Marques

Jornalista, especialista em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância.

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Jairo Marques

Os 'inamoráveis'

Não namorar pode afetar o bem-estar, a predisposição para a felicidade

​Se a terça-feira (12) foi o dia nacional de os pombinhos festejarem o amor, hoje poderia ser marcado como o tempo de pensar na ressaca dos “inamoráveis”, pessoas que sentem uma falta danada de viver relacionamentos, mas têm extrema dificuldade de arrumar um sapato velho para acolher o seu pé cascudo.

Ele, que tem deficiência visual, ela, cadeirante, completam-se também em demandas do dia dia Foto: Arquivo Pessoal
Casal em que ele tem deficiência visual e ela é cadeirante; Os dois se completam em demandas do dia dia - Arquivo Pessoal

São diversas as razões para passar a vida toda ou parte dela de braços dados com a solidão amorosa: a timidez extrema que não permite aproximações, o acaso que leva um grande parceiro precocemente, as deformidades que provocam rejeição, as deficiências severas que podem impedir o sair de casa e dificultar a comunicação, as deficiências intelectuais que podem alterar rituais de conquista. 

Ah, e tem também os esquisitões de toda ordem, que, às vezes, mal têm a chance de abrir a boca para combater estereótipos, preconceitos e primeiras impressões.

O ponto chave de toda angústia de não conseguir um parceiro de jornada —mesmo que seja apenas por um pedacinho de tempo— guarda intimidade com a busca de padrões sejam eles relativos à boniteza, sejam eles ligados à forma de interpretar o companheirismo, muitas vezes contaminada com elementos aventureiros, de poses  elegantes em porta-retratos, de grandes momentos regados à champanhe.

“Difinitivamente”, como falava minha tia Filinha, que morreu no mês passado, passar a existência sem degustar as doçuras e amargores de compartilhar o dia a dia ao lado de alguém não é detalhe. Na cesta básica da vida, experimentar a reciprocidade do amor é seguramente produto de necessidade extrema.

No Reino Unido a questão dos “inamoráveis” (achei bonito o neologismo!) é tão séria que agências de namoro especializadas em casos considerados muito difíceis de engatar coraçõezinhos são aptas a receber fomento público.

Faz sentido total, uma vez que não namorar, não ter uma amizade colorida —será que ainda se fala isso?— pode afetar o bem-estar, a predisposição para a felicidade de um cidadão. O isolamento faz escorrer infelicidade e faz abrir portas para quadros depressivos, doenças oportunistas.

Uma série disponível em um serviço de filmes online conta uma experiência britânica. “The Undateables” mistura a delicadeza dos sonhos de quem busca uma companhia, com um humor gerado pela inexperiência do compartilhar, amarrando também com situações de angústias diante à espera por um encontro, por um carinho, por um afago na alma, por um beijo.

Um dos pontos altos da produção é mostrar que não necessariamente juntar “iguais” vai produzir o mapa que faz chegar a tesouros sentimentais. Pode rolar amor entre casais de cadeirantes, de cegos, de paralisados cerebrais, mas em nada a condição de alguém vai determinar sucesso em relacionamentos.

Talvez padecer de perrengues semelhantes faça ampliar a compreensão a respeito das carências e necessidades do outro, mas amor, companheirismo, têm a ver com rir da piada do “pavê ou pacumê”, de gostar de vídeos de gatinho, de permitir-se encantar pelos formatos das nuvens.

Na real, ninguém no mundo pode ser considerado “inamorável” e jamais deve aceitar esse rótulo. Brotar sentimento e engatar namoro tem a ver com desembarcar a mente e o coração de expectativas de cinema e exaltar o desejo de construção de bons momentos a dois, e isso não se compromete com o quão torto se é, mas, sim, alcança-se com disposição para amar.

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