João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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João Wainer

O último surfista de trem

É simbólica a obsessão dos pixadores pelo topo, mesmo sabendo que isso pode levá-los à morte; é a cara de SP, todo o mundo quer o topo de alguma coisa, não importa o custo

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William é surfista de trem. Na verdade era, pois de uns anos para cá houve a troca gradativa de vagões da CPTM por modelos mais modernos e esse tradicional "esporte" da quebrada que viveu seu auge nos anos 90 praticamente acabou aqui em São Paulo.

Os novos trens têm ar condicionado e a janela é blindada, não existe mais acesso à parte de cima que nos modelos antigos era feito por uma janela estreita onde circulava o ar.

Além de surfar trem, William também é pixador. Sua especialidade é escalar prédios enormes pelo lado de fora e deixar sua marca com tinta preta nos lugares mais altos e improváveis. Quem olha para cima no centro da cidade tem grande chance de encontrar o logotipo do "Operação 12" e o da grife "Os + Fortes" no topo de algum edifício. Ele escala sem nenhum equipamento de proteção e quase sempre toma um conhaque no boteco antes de subir.

É simbólica a obsessão dos pixadores pelo topo, mesmo sabendo que isso pode levá-los à morte. Isso é a cara de São Paulo, todo o mundo quer o topo de alguma coisa nessa cidade, não importa o custo. Nem todos conseguem. Flip, do Cripta, caiu de um prédio na Senador Feijó. Guigo, do Néticos, despencou na avenida Rebouças. Os dois morreram na contramão atrapalhando o tráfego.

Perguntei para William o que era mais difícil, surfe no trem ou escalada. A resposta veio fácil. O prédio pelo menos fica parado.

Em cima do vagão qualquer movimento errado é fatal. Se encostar nos fios de alta tensão morre eletrocutado e o corpo é carbonizado. Se pisar em falso e cair lá de cima, morre com fraturas múltiplas pelo corpo. Se for pego pelo segurança, apanha como se tivesse caído.

Robson, de 17 anos, bateu no galho de uma árvore, caiu entre dois vagões e foi atropelado pelo trem. Aarão tinha 20 e morreu eletrocutado em Ermelino Matarazzo. Talvez apenas a polícia tenha matado mais gente na quebrada do que o surfe de trem e a escalada.

O jovem morador da periferia de Osasco parece não ter medo de nada. Se tivesse tido alguma chance na vida poderia, em vez de surfar trem e escalar prédio, dropar ondas gigantes em Nazaré ou escalar montanhas como o Everest. Ele tem na alma o mesmo ímpeto que move atletas de ponta em direção ao desafio, mas sem a oportunidade de desenvolver seus talentos de forma saudável foi jogado nessa espiral de morte.

Um esporte como o surfe de ondas grandes requer de seus praticantes muito treinamento, preparo físico, equipamento de segurança, jet ski na água e ambulância com médicos e oxigênio na areia. Essa estrutura traz um mínimo de segurança e faz de um esporte de alto risco algo que aproxima seus praticantes mais da vida do que da morte.

São comuns declarações desses atletas dizendo que o risco os faz se sentir mais vivos. Não posso imaginar o que passa na cabeça de um surfista de trem depois de sobreviver a uma sessão.

Na quebrada, a escola é ruim, o transporte está sempre lotado, os hospitais são caóticos e isso sem falar na violência policial que é um capítulo à parte. A falta de emprego, assistência e condições decentes muitas vezes levam famílias a uma desestruturação completa. O álcool vira tábua de salvação e joga a pá de cal no que sobra de dignidade dentro de casa. Com o Estado entregando tanta coisa ruim de presente para um jovem, não é difícil entender de onde vem essa pulsão de morte.

Em uma cena do filme "Pixo", que dirigi com Roberto T. Oliveira em 2010, William está em frente a um muro com um texto ao fundo escrito em letras de forma. Me conta que não sabe ler "letra normal". Já o muro ao lado está completamente pixado e ele não tem nenhuma dificuldade em decifrar aquele alfabeto incompreensível para mim. Não é falta de potencial, é falta de oportunidade mesmo. A concentração de renda e a desigualdade empurram essas pessoas para um lugar impossível de sair.

Imaginem quantos talentos são desperdiçados na máquina de moer carne que é o dia a dia de quem passa necessidade. Gente que poderia estar se destacando na ciência, fazendo pesquisa, nos esportes de alto rendimento dando orgulho para o país, liderando equipes, inovando e construindo, simplesmente sendo jogados todos os dias no limbo às próprias sortes.

Enquanto isso, na ponta mais fina da pirâmide social, um monte de gente medíocre brilha e faz sucesso sem nenhum talento, apenas por ter tido infinitas oportunidades de se dar bem. Para que sobrem tantas chances no andar de cima, gente como William teve que ser silenciada lá embaixo. Com ele fora do páreo, seus herdeiros têm mais chances de prosperar. Vão entrar mais facilmente nas universidades, vão ficar com os melhores empregos e salários, ocupar os postos chaves na condução do país.

Se caras como o William fossem estimulados e tivessem oportunidade de mostrar seu valor em algo positivo, se fossem eles, os melhores, a conduzir o país, pode ter certeza que o Brasil seria um lugar muito melhor.


"Pensando bem que desperdício,

Aqui na área acontece muito disso,

Inteligência e personalidade

Mofando atrás da porra de uma grade"
Racionais MCs

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