João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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Vai passar

A melhor maneira de honrar a memória dos mortos é fazer deste país um lugar melhor quando este governo acabar

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Quando tudo ainda era mato na avenida Paulista, eram sempre os mesmos que estavam ali protestando. As bandeiras vermelhas, os carros de som, partidos de esquerda, sindicatos, palavras de ordem e a rotineira violência policial. Fotografei centenas deles para esta Folha. As pautas eram diversas, mas os atos tinham um formato parecido e obedeciam a uma lógica previsível.

Isso até o dia 20 de junho de 2013, quando mudou tudo.

A série de atos do Movimento Passe Livre contra o aumento da passagem de ônibus estava crescendo e ganhando relevância nos eventos que ficaram conhecidos como Jornadas de Junho. Havia um grupo novo chegando na rua e se misturando aos manifestantes tradicionais.

Naquela quinta-feira eles resolveram mostrar a cara. Vieram devagar aos gritos de "sem partido", atraíram os descontentes com “tudo isso que está aí" e formaram um novo bloco extremamente agressivo, que queimava bandeiras e intimidava outros manifestantes, transformando em palavras de ordem o discurso de ódio comum nas redes sociais. Essa transição é mostrada de forma cristalina no documentário “Junho”, que dirigi em 2013 e foi lançado pela Folha em 2014 (disponível na Amazon Prime, Now, Google Play e Itunes Store).

Foi a primeira vez que vi essas pessoas fora da internet. Não era possível que aquilo existisse de verdade. Aquela noite foi como se a caixa de Pandora finalmente tivesse sido aberta e os males do mundo espalhados ao vento encontrassem morada no colo do bolsonarismo. A partir dali, o país foi só ladeira abaixo. Mergulhamos em uma espiral de ódio e desgraças que começou no 7 a 1 contra a Alemanha, passou por um golpe de Estado e desaguou nas quase 500 mil mortes da pandemia.

A partir desse dia, a lógica das manifestações foi totalmente alterada. O verde e o amarelo se transformaram nas cores predominantes das ruas, e as pautas ficaram cada vez mais tresloucadas. Foi criado o protesto a favor, pela volta da ditadura, fechamento do Supremo e contra a vacina. Pessoas como Sara Winter e Paulo Kogos se tornaram líderes. A polícia, que adorava reprimir manifestações, passou a marchar junto e fazer selfies com os participantes. Parlamentares malucos como Carla Zambelli e Osmar Terra ganharam protagonismo, e o que parecia uma piada ruim se mostrou um movimento extremamente perigoso.

No mito grego de Pandora, depois de abrir a caixa e espalhar todo o mal pelo mundo, ela consegue colocar a tampa de volta a tempo de não deixar a esperança escapar de dentro dela. As manifestações deste sábado foram um alento nesse sentido.

Milhares de pessoas ocuparam as ruas caminhando de forma organizada e consciente, preservando o distanciamento físico na medida do possível e muito atentos ao uso de máscaras e álcool em gel. Mais do que um protesto, foi uma grande marcha fúnebre em homenagem aos mais de 462 mil mortos da pandemia no país. Pessoas de luto que faziam questão de lembrar em cartazes seus familiares mortos pelo vírus.

Em maio do ano passado, manifestações gigantescas em repúdio à morte de George Floyd nos Estados Unidos foram organizadas de forma parecida. Ajudaram a derrubar o ex-presidente Donald Trump nas eleições e, de quebra, não impactaram diretamente nos números da Covid. Ficaram algumas lições, como os fatos de que é possível fazer uma manifestação potente sem transmitir o vírus, de que no contexto pandêmico cada manifestante vale por três e de que a rua é um fator que pode sempre decidir uma eleição.

Posso estar sendo otimista demais, mas começo a vislumbrar um mundo sem vírus e sem Bolsonaro. Um presidente assim é como um bode na sala. No dia em que ele deixar o Planalto vai ser um alívio tão grande que as coisas vão melhorar por osmose. Vamos nos livrar dos dois ao mesmo tempo.

Apesar do ritmo lento da vacinação, é bem provável que no dia 1º de janeiro de 2023, quando Bolsonaro tiver que deixar a Presidência humilhado pelas urnas, alegando fraude e se recusando a entregar a faixa ao sucessor, toda a população já esteja vacinada.

Depois de tanta dor e morte, se faz necessária uma catarse coletiva para lavar a alma do brasileiro. Um sentimento que está entalado no fundo da alma de cada um dos sobreviventes da pandemia e do bolsonarismo.

Pode botar no calendário e já ir se preparando, pois em fevereiro de 2023 vai acontecer o maior Carnaval de todos os tempos. Não apenas porque, para cada ano sem Carnaval, uma semana a mais de festa deverá ser acrescida à folia, mas porque tudo o que ficou engasgado nos anos anteriores vai ser posto para fora naquela que vai ficar conhecida como a maior festa do século. Vai ter gente lambendo até maçaneta para tirar a zica desses últimos anos.

Como no samba de Assis Valente em que anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar, vamos descobrir que o tal do mundo não se acabou. A próxima década vai ser de reconstrução, assim como foram os anos 1920 após a gripe espanhola e a Primeira Guerra Mundial, mas o país vai voltar a respirar, os artistas vão voltar a produzir coisas bonitas e a economia vai melhorar.

Vamos devolver essa gente cheia de ódio para os bueiros de onde saiu em 2013 e garantir que esse tipo de coisa não aconteça novamente no futuro. Os sobreviventes do vírus e do presidente vão precisar seguir a vida, e a melhor maneira de honrar a memória dos mortos é fazer deste país um lugar melhor quando esse governo de trevas acabar.

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