João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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João Wainer

Um cemitério e dois genocídios

Cemitério dos crimes, São Luiz recebeu também as vítimas de Covid

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Todo dia 2 de novembro é parecido no cemitério São Luiz, o maior da zona sul de São Paulo. Desde cedo uma multidão sobe a pé a avenida Fim de Semana e cruza o portão principal para cultuar seus mortos, deixar flores, chorar e lembrar das pessoas queridas em um dos lugares mais tristes da cidade. Esse ano, porém, o Dia de Finados tem um sabor mais amargo do que o normal.

O São Luiz é há muito tempo o principal destino de boa parte dos corpos pretos e pobres das vítimas do genocídio que mata 60 mil pessoas violentamente todos os anos. A triste cena das senhoras humildes e de pele escura colocando flores sobre a sepultura de seus filhos assassinados descrita pelo grupo de rap Racionais MCs na letra de "Fórmula Mágica da Paz" ganhou um adendo com a pandemia de Covid.

As mães de favela, que sempre foram maioria entre os visitantes nesse período do ano, agora convivem com filhos que vão visitar seus pais e avós mortos pelo vírus que já fez mais de 600 mil vítimas desde sua chegada. Não tenho notícia de nenhum outro cemitério no mundo que tenha enterrado vítimas de dois genocídios simultâneos.

Flores deixadas por familiares sobre sepultura no cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo
Flores deixadas por familiares sobre sepultura no cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo - Lalo de Almeida/ Folhapress

A região do Jardim Ângela e do Capão Redondo, bairros vizinhos ao cemitério, foi considerada pela ONU no final dos anos 90 o lugar mais violento do mundo, com taxas de homicídio superiores às de zonas de guerra. Nessa época trabalhei como fotógrafo do extinto jornal Notícias Populares que cobria de forma sistemática a matança na região e aprendi o significado do São Luiz no imaginário de quem vive ali.

Em abril do ano passado filmei com um drone centenas de covas sendo abertas por funcionários para abrigar os mortos da Covid em uma imagem assustadora. Nos anos 90 essa cena era vista na véspera de feriados como o Carnaval, período em que os homicídios disparavam. Existem relatos de até 27 enterros de vítimas da violência em um mesmo dia.

Um amigo cujos pais estão enterrados lá contou que no auge da violência eram comuns tiroteios até durante os velórios. Os assassinos quando não conseguiam terminar o serviço na rua apareciam no velório para terminar de matar a família ou os amigos da vítima.

Outra cena tão bizarra quanto cotidiana acontecia no período das chuvas. Por ser construído em uma ladeira e pelo fato de boa parte das covas serem rasas, ossadas inteiras eram levadas pela enxurrada até a parte de baixo do cemitério, que faz divisa com os predinhos do CDHU construídos no final da descida.

As mesmas crianças que hoje aproveitam o movimento do dia Dia de Finados para pintar e cortar o mato dos túmulos em troca de alguns trocados, até outro dia eram vistas empinando pipa e correndo de um lado para o outro no terreno do cemitério. É simbólico que a falta de emprego e lazer nas regiões periféricas da cidade obrigue as crianças a literalmente brincarem e trabalharem sobre cadáveres.

Não é normal um filho morrer antes que a mãe. Não é normal uma sociedade naturalizar mais de 60 mil homicídios por ano. Não é normal convivermos com 600 mil mortes que poderiam ser evitadas com medidas sanitárias simples.

Banalizar essas mortes e considerar o anormal como sendo algo normal é sintoma grave de uma doença social que precisa ser tratada de forma séria e responsável no Brasil. Ao eleger um presidente com fixação por armas, amante de torturadores e movido por uma pulsão de morte como Bolsonaro, o país tentou apagar o fogo com gasolina e ajudou a encher os cemitérios com gente que não deveria estar ali.

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