João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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Isso não é América

Rapper porto-riquenho Residente lança clipe para dizer que América é um continente inteiro, não só os EUA

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Um ator no papel do presidente Jair Bolsonaro está sentado em seu gabinete com um prato de carne sobre a mesa de trabalho. Atrás dele, uma criança indígena o observa comer e limpar a boca engordurada na bandeira do Brasil. A floresta que virou pasto está presente na cena.

Essa é apenas uma das dezenas de referências explícitas às lutas populares latinoamericanas que "This Is Not América" videoclipe do rapper porto-riquenho Residente, lançado na última quinta-feira, resgata para dizer em alto e bom som que a palavra "América" se refere a um continente que vai da Tierra del Fuego até o Canadá, e não apenas ao território dos EUA. "Tem que ser bem burro para não perceber isso" completa o rapper na letra da música.

Poucos artistas foram capazes de cantar a América Latina de forma tão crua e verdadeira quanto Residente e seus parceiros Visitante e PG-13, do grupo Calle 13, mas "This Is Not América", desta vez um trabalho solo de Residente em parceria com o duo franco cubano Ibeyi, vai além de tudo o que já foi feito no gênero.

Cena de "This Is Not América", videoclipe do rapper porto-riquenho Residente
Cena de "This Is Not América", videoclipe do rapper porto-riquenho Residente - Reprodução/Youtube

Através da reconstituição de fragmentos da história recente latinoamericana, ele mostra de forma didática o quanto esse continente sofreu nos últimos séculos, primeiro nas mãos de seus "descobridores" europeus, que, como diz a letra, "roubaram até a comida do gato e ainda estão lambendo o prato" e depois subjugados por seu integrante mais rico e poderoso, os Estados Unidos, país que através da Operação Condor concebeu e deu suporte a golpes de Estado em vários países e segue interferindo até hoje de forma bem pouco republicana na soberania de seus vizinhos e não tão vizinhos assim.

O clipe, dirigido pelo francês Greg Ohrel, começa reproduzindo a obra do artista chileno Alfredo Jaar, que em 1987 escreveu em um painel enorme na Times Square a frase que se tornou o título da música de Residente: "This is Not América".

Em seguida, Lolita Lebrón, figura fundamental no processo de independência de Porto Rico, surge dando um tiro para cima em frente ao congresso dos EUA e sendo presa em seguida. A partir daí as referências não param mais.

Residente faz questão de lembrar que o nome do rapper estadunidense 2Pac vem do líder indígena peruano Tupac Amaru. A cena em que policiais puxam uma mulher pelos braços e pernas simboliza a morte de Amaru, que foi esquartejado tendo seu corpo puxado por quatro cavalos em direções opostas.

Cenas simbolizando o Exército Zapatista de Libertação Nacional, de Chiapas, no México, os Macheteros de Porto Rico, os "Limpiabotas" da Bolívia, se misturam a acontecimentos importantes como o assassinato de 43 estudantes em Ayotzinapa após protestarem contra o prefeito da cidade e a prisão de crianças na fronteira México/EUA. Em todas essas cenas aparece uma figura indígena que observa tudo, mas não participa da ação.

Um dos momentos mais impressionantes do clipe é a reprodução do assassinato do músico chileno Victor Jara pela ditadura de Augusto Pinochet no Estádio Nacional do Chile. É bem nessa hora que Residente manda um recado para Childish Gambino, autor de "This is America": "Gambino, mi hermano, Esto si es América".

Mais do que um contraponto, "This is Not America" é uma sequência, uma continuação de "This is America", que mostra como a violência produzida nos Estados Unidos que Gambino retratou tão bem em seu trabalho é capaz de se espalhar como onda e ir muito além, alcançando várias partes do mundo provocando estragos irreversíveis. Depois de tanta pilhagem e violência, a América Latina tem todo direito de se revoltar.

Em seu livro "As Veias Abertas da América Latina", Eduardo Galeano escreve uma frase sobre esse continente de que o Brasil finge não fazer parte e que poderia ser a síntese do clipe de Residente: "Aqueles que ganharam só puderam ganhar porque perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota sempre esteve implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus agentes nativos".

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