João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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Descrição de chapéu jornalismo

Distinguir piada de notícia ficou cada vez mais difícil no governo Bolsonaro

Nos últimos anos, sempre que surgia uma nova aberração no noticiário, eu me lembrava do extinto jornal Notícias Populares

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Desde que esse governo de patetas entrou em ação em 2018, ficou cada vez mais difícil distinguir piada de notícia séria nos sites dos jornais. Veículos como Sensacionalista, que se auto intitula um jornal isento da verdade e o podcast Medo e Delírio em Brasília, que afirma fazer um diário dessa bad trip escrota que a gente se meteu, têm sido brilhantes em provocar confusão misturada com reflexão na mente de seus leitores e ouvintes, que desde o dia em que o presidente da República deu início a uma discussão sobre "golden shower" no twitter, não duvidam mais de nenhuma notícia vinda da capital federal, por mais exótica que pareça.

Nos últimos anos, sempre que surgia uma nova aberração no noticiário, como Bolsonaro dando cloroquina para uma ema ou a polícia encontrando 39 kg de cocaína no avião da comitiva presidencial, eu me lembrava do extinto jornal Notícias Populares, que trabalhei por um curto mas intenso período. Apesar de sua cobertura ser predominantemente local, muitas vezes o noticiário nacional se impunha e hoje tento imaginar como o NP cobriria esse período tão estranho que vivemos.

Em destaque, Bolsonaro, de máscara, segura e mostra uma caixa de cloroquina. Ao fundo, se vê uma ema
Bolsonaro, de máscara, segura uma caixa de cloroquina ao lado de uma ema - Evaristo Sá - 23.jul.2020/AFP

Qual seria a manchete no dia seguinte ao Ministro da Educação Abraham Weintraub escrever "imprecionante" em uma rede social, ou quando um secretário da Cultura que fez cosplay de Goebbels foi trocado por um ator da malhação? Como o jornal repercutiria as declarações de Regina Duarte sobre o peido do palhaço, as maluquices de Damares Alves ou as menções à atriz pornô Mia Khalifa na CPI da Covid? Quantos trocadilhos seriam possíveis ao se tratar da rachadinha da família ou da reunião de condomínio do Vivendas da Barra?

Conhecido por suas capas sangrentas e sexuais, o jornal se destacava na banca. Ao lado de diários tradicionais, trazia manchetes bem humoradas e em letras garrafais que dividiam espaço com fotos de vítimas de homicídio e mulheres nuas que não passavam despercebidas por ninguém que andava na rua. Em um tempo em que ainda não existia internet, as capas do NP viralizavam no boca a boca e de um jeito ou de outro, todo mundo ficava sabendo o que estava acontecendo.

Para explicar uma notícia complexa de economia, a manchete tinha que ser simples e objetiva como "Subiu a Brahma e o Hollywood". No dia seguinte a um blecaute, a capa toda preta e o título "PUF" já dizia tudo. Isso sem falar nos clássicos como a mulher que deu a luz a uma tartaruga ou o broxa que torrou o pênis na tomada.

Zueira a parte, o NP usava a bizarrice, sexo e uma boa dose de cascata para chamar a atenção de uma parcela menos escolarizada da população para assuntos sérios e relevantes como direitos fundamentais, previdência social e organização sindical. Era muitas vezes a única fonte de informação para bastante gente, que o comprava pelo entretenimento e acabava se informando sobre muitas outras coisas que eram importantes.

Vinte e um anos depois de seu fechamento, basta olhar em volta para perceber o quão moderno aquilo era. O conceito que o NP trazia em seu DNA se tornou dominante com a chegada da internet. Cada módulo da capa do jornal era praticamente um meme analógico. Suas matérias eram curtas, quase um tweet. As letras e fotos eram grandes e chamavam a atenção como um GIF. Seus temas como nudez, sangue e bizarrices fisgavam o leitor através de seus instintos mais primitivos, igualzinho a qualquer clickbait que hoje pipoca por aí. Até as cascatas que o jornal inventava como o famoso caso do bebê diabo estão mais atuais do que nunca com a avalanche de fake news que inundam nossos feeds.

O deputado Pastor Sargento Isidório disse em 2019 na tribuna da câmara que se considerava apto a discutir com Bolsonaro pois só um doido poderia entender outro doido. Se o Notícias Populares ainda existisse nos dias de hoje, o mesmo conceito poderia ser aplicado. Só um jornal surreal como aquele para cobrir um governo de abilolados como esse.

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