João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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João Wainer

Meu avô, minhas filhas e a liberdade

Meu amigo diz para não confundirmos briga com luta, pois briga tem hora para acabar e luta é para uma vida inteira

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Nasceu na última semana mais um pedaço de mim. Minha terceira filha, Irene Ancona Wainer, chegou em um parto rápido, bonito e sereno. Nasceu em um raro domingo de Carnaval em abril e trouxe junto com ela, além da felicidade extrema, uma preocupação dolorida com o país que a aguarda aqui fora.

Não é para menos. Ontem, feriado de 1º de maio, vi na televisão pessoas nas ruas pedindo a volta da ditadura, o fechamento do congresso e o fim do STF. Longe das câmeras, jovens pretos e pobres continuam sendo assassinados, igualzinho a todos os dias no genocídio gradativo que a maioria prefere não ver. Na Amazônia, garimpeiros estupram meninas indígenas e a própria floresta sob aplausos de um presidente que já deixou bem claro para quem quiser ouvir que vai dar um golpe assim que perder a eleição em outubro. A democracia está de fato ameaçada e nem o mais otimista tiraria a minha razão ao me preocupar com o futuro da pequena Irene.

Em dezembro de 1978, meu avô Samuel Wainer escreveu nesta Folha uma coluna sobre um livro que considerou o mais importante daquele ano. A obra, publicada pela Adusp sob o título de "O Livro Negro da USP", falava sobre o controle ideológico nas universidades durante a ditadura e seus efeitos nefastos. Por não ser uma edição comercial, ele pediu ao amigo Perseu Abramo três cópias do livro, para presentear a cada um de seus três netos, todos ainda muito pequenos, e escreveu uma dedicatória para cada um.

Dedicatória de Samuel Wainer ao neto, João, na obra "O Livro Negro da USP"
Dedicatória de Samuel Wainer ao neto, João, na obra "O Livro Negro da USP" - Arquivo pessoal

No exemplar, que hoje tem lugar de destaque na minha estante, está escrito à mão: "O meu primeiro neto, filho da minha primeira filha, introdutor da linhagem dos Wainer de Oliveira na luta que seu avô nunca deixou de travar por um Brasil mais livre, essa lição de que lutar pela liberdade é lutar pela coisa mais importante da vida do homem. Do seu avô Samuel".

Me lembro do alívio ao ler isso pela primeira vez, muitos anos atrás, por sentir que finalmente vivíamos em um país livre graças à luta de muitos que defenderam com unhas e dentes a liberdade e a democracia durante o regime militar para que pudéssemos chegar até aqui. Com a democracia garantida, sentia que a luta da minha geração deveria ser pela inclusão social, distribuição de renda e igualdade de oportunidades, o que não é pouca coisa.

O que nunca imaginei ao ler as palavras escritas por ele é que, 44 anos depois, na chegada de sua bisneta a esse mundo, tudo o que foi conquistado por sua geração estivesse mais uma vez sob ameaça. Não é apenas o fato de Bolsonaro ser presidente, mas sim saber que minha filha nasce em um país cujo povo é capaz de eleger um fascista depois de tudo o que passamos.

Mas quando eu chego na beirada do berço e olho para carinha dela dormindo, essa preocupação se transforma em esperança e vira combustível para não desistir, para seguir lutando, gritando, esperneando até ficar bem claro para o mundo que o Brasil é muito maior do que essa gente horrorosa que estava na Paulista neste domingo (1º).

Meu amigo, o poeta Sérgio Vaz, diz para não confundirmos briga com luta, pois briga tem hora para acabar e luta é para uma vida inteira. Olhando para trás e para frente ao mesmo tempo, para meu avô e para minha filha que acabou de nascer, só posso concordar. A cada nova geração a luta se renova e, por mais difícil que pareça, se todo mundo fizer sua parte, nossas filhas, netas, bisnetas e tataranetas viverão em um país melhor, mais justo e igual para todos. Enquanto esse dia não chega, só nos resta não esquecer a lição do velho Samuel de que lutar pela liberdade é lutar pela coisa mais importante da vida do homem.

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