Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Estilistas que desprezaram mulher de Trump têm a misoginia do presidente
Binho Barreto/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Teremos muito tempo para falar de Donald Trump. Leitores atentos sabem que não gosto do bicho. Não mudei de opinião.
Mas hoje prefiro falar de Melania Trump. Primeiro, porque a senhora parece-me mais civilizada do que o marido. Mas também porque houve uma "controvérsia" sobre quem vestiria a primeira-dama para o dia da tomada de posse de Donald Trump.
Dizem os jornais que os principais criadores de trapos se recusaram a fazê-lo. Um deles, Tom Ford, foi suficientemente grosseiro para afirmar que não gostaria de ter o seu nome associado à senhora. Quem será esse Tom Ford? Em que caverna foi educado? Será que ele usa talheres com competência mínima?
Mistério. Imagino que Tom Ford seja o mesmo diretor de cinema que os americanos, sempre com os seus complexos de inferioridade face aos europeus, consideram um caso único de "sofisticação". Pausa para risadas.
Mas voltemos a Melania Trump. Porque, no dia da tomada de posse, foi Ralph Lauren quem desenhou os trapos para salvar a honra do convento. Belos trapos, por sinal.
O caso, que em princípio não deveria merecer dois minutos de atenção, revela três coisas sobre a "inteligência" liberal (no sentido americano do adjetivo) com relevância política.
Em primeiro lugar, registra-se com agrado a forma como a ética da boçalidade é exercida publicamente e aplaudida publicamente. Uma coisa é recusar vestir uma senhora, o que já me parece uma atitude casca grossa. Outra é humilhá-la como se fosse a encarnação da peste.
As mulheres que marcharam contra a misoginia de Donald Trump pelo visto não se incomodaram com a misoginia de Tom Ford e restante trupe. Quando são as mulheres dos nossos inimigos, que se dane a defesa da dignidade feminina. Fogueira com elas!
Mas Melania Trump foi humilhada por quê?
Segundo ponto: por "crime de proximidade". Curioso. Eu julgava que esse tipo de delito era exclusivo de regimes totalitários. O século 20 foi pródigo em processos desse gênero: alguém fugia de uma "democracia popular" e a família era responsabilizada e punida. Em muitos países onde o fanatismo islamita impera, a moda continua.
Melania Trump não é responsável pelas ideias ou ações do marido. Não é conhecida por nenhuma espécie de militância política. E, segundo consta, ficará em Nova York para cuidar do filho. A humilhação pública só revela o nível de violência e fanatismo que define as exatas brigadas que acusam Trump (o Donald) de violência e fanatismo.
Mas existe um terceiro ponto que expõe, de forma mais profunda, a hipocrisia liberal. Melania é imigrante. Da Eslovênia. E nas declarações de aviltamento era impossível não vislumbrar o desprezo, para não dizer a xenofobia, face ao "white trash" do leste europeu. Pelo visto, Donald Trump não detém o exclusivo da xenofobia.
Eis a ironia fatal: os estilistas que desprezaram Melania Trump são bastante parecidos com o marido dela. Na misoginia, no fanatismo, até no ranço xenófobo que esse caso aparentemente menor revelou ao mundo.
Anotei o nome de todos os "criadores" que participaram nesse novo julgamento de Salem. Não me interessa se o fizeram por razões políticas, econômicas –ou por pura estupidez congênita. Talvez exista uma combinação das três. De mim, jamais levarão um tostão.
Esse privilégio reservo para o sr. Ralph Lauren. Já era cliente do cavalheiro. Um pouco de nostalgia: na primeira vez que fui a Londres sozinho, aos 16 ou 17 anos, levava dinheiro contado para sobreviver um mês.
Pois sim. Quando cheguei à cidade, entrei na loja de New Bond Street e, em ato tresloucado, comprei um belíssimo tweed de verão (sim, um tweed de verão) e fiquei a contar tostões nas semanas seguintes. Vivi como um mendigo mas vesti-me como um príncipe.
Vejo agora que valeu a pena o sacrifício. E digo mais: enquanto a presidência Trump durar, os meus blazers, as minhas calças, as minhas camisas e até as minhas cuecas serão compradas na loja respectiva.
Podemos viver como mendigos mas jamais perder as maneiras.
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