João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu

Big Brother Brasília

Qualquer forma de política 'carismática' é um perigo brutal para a sobrevivência das democracias liberais

Ilustração João Pereira Coutinho
Angelo Abu/Folhapress

Luciano Huck para presidente? Ele diz que não. Acredito. Mas, se a decisão fosse outra, o Brasil estaria na vanguarda das democracias ocidentais —e Fernando Henrique Cardoso percebeu isso.

Anos atrás, na revista "Foreign Policy", FHC publicou um bom artigo sobre o futuro dos partidos políticos. "Futuro", vírgula: FHC não acreditava que houvesse futuro para os partidos. As tradicionais divisões ideológicas entre esquerda e direita já não tinham o mesmo significado —e a mesma militância.

E, além disso, a desilusão do eleitorado com o "establishment" faria emergir movimentos, grupos, "populistas" (termo meu, não de FHC) capazes de rivalizar com as estruturas decrépitas e assaz rígidas dos partidos. Fernando Henrique foi um visionário.

Claro: existe uma diferença entre mim e FHC. Para ele, essa nova realidade extrapartidária não parece ser um mal em si, sobretudo se os partidos não se souberem recriar para responder aos desafios do presente. O entusiasmo de FHC com Huck demonstra isso: o apresentador "areja", "põe em xeque os partidos", afirmou o ex-presidente.

Para mim, qualquer forma de política "carismática" representa sempre um perigo brutal para a sobrevivência das democracias liberais e das suas instituições. Mas admito que o "espírito do tempo" está mais próximo de FHC.

E mais próximo de Luciano Huck, já agora. Um exemplo: a revista "The Spectator" publicou um ensaio revelador sobre os possíveis candidatos democratas para as eleições norte-americanas de 2020. Não perco tempo com nomes menores. Prefiro avançar para os nomes maiores, que aliás surgem na capa da revista: Oprah Winfrey, Tom Hanks, George Clooney. O que têm os três em comum?

Sim, créditos progressistas imaculados. Mas o essencial não está na ideologia. Está na celebridade: os três são produtos da indústria de entretenimento. Exatamente como Donald Trump. A lógica é fulminante: se Donald Trump foi um produto midiático de sucesso, é preciso responder na mesma moeda.

Essa hipótese arrepia a minha costela platônica —e escrevo "platônica" no sentido próprio do tempo. Se existe uma ideia consensual na história da política moderna é a velha crença de que os melhores devem governar, como Platão defendia na sua "República".

Bem sei que a realidade nem sempre cumpre o ideal. Mas o ideal não existe para ser cumprido. Existe, quando muito, para que a realidade se aproxime dele.

Dito de outra forma: se a política é, ou deve ser, a mais nobre das artes, então espera-se de um governante algumas virtudes que exigem preparação e conhecimento.

Tudo isso está em causa nas "democracias midiáticas" em que vivemos. Não são os melhores que vencem; os melhores são aqueles que vendem. E vendem o quê? Uma imagem que corresponde às preferências voláteis e sentimentais dos consumidores.

Quando os democratas cogitam a hipótese de um George Clooney para a Casa Branca, ninguém perde um minuto para indagar as ideias do senhor. Ideias? Quais ideias? O que interessa é o sorriso, o olhar, o traje e dezenas de outras imbecilidades avulsas. As democracias midiáticas não querem políticos, mas estrelas pop.

E no futuro?

Não pretendo horrorizar ninguém. Mas imagino facilmente dois cenários.

O primeiro seria transformar os partidos políticos em organizações muito semelhantes às agências de modelos. Haveria o "estilista" ideológico --alguém responsável por um programa eleitoral mais ou menos clássico; e, depois, haveria o candidato-modelo para desfilar na "passerelle" dos comícios e dos debates.

O candidato-modelo seria apenas uma máscara, uma marionete do partido, com a única missão de apaixonar as massas. Uma vez eleito, ele continuaria o seu trabalho de fachada, deixando para os comuns mortais a mecânica burocrática do governo.

Outro caminho seria acabar com os partidos e, por exemplo, criar um show televisivo --um "Big Brother Brasília", digamos. Nesse caso, seriam as massas a escolher diretamente o presidente, depois de assistirem às suas proezas em sunga ou biquíni.

Hoje, olhamos para Donald Trump ou Oprah Winfrey como excentricidades. Dois nomes que representam o triunfo do entretenimento sobre a política.

Amanhã, quando o dilúvio chegar, ainda vamos olhar para trás e recordar Trump ou Oprah como os últimos grandes estadistas.

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