Em evento promovido por esta Folha, a ministra Cármen Lúcia afirmou: “O direito não acaba com o preconceito. O direito proíbe o preconceito”.
Em duas frases, quanta lucidez! E quanto realismo! Não acredito num mundo sem preconceitos. Tenho vários. O leitor também, quando não está representando o seu papel social. Falo de inclinações de caráter ou gosto que não conseguimos explicar —mas que emergem instintivamente, irracionalmente, vergonhosamente.
Não vou confessar os meus porque o ponto é precisamente esse: o preconceito é problemático quando se converte em ação. Pior: em ação injusta ou violenta. Em rigor, não existem pensamentos “criminosos”; apenas atos criminosos, que muitas vezes são a decorrência de certos pensamentos.
É disso que a presidente do STF fala: podemos proibir as manifestações de certos preconceitos —pessoalmente, apenas quando existe esse risco de violência contra o outro. Mas acreditar que a lei consegue entrar na cabeça de cada um com um esponja moral e remover as teias de aranha que lá existem, peço desculpa, isso não é apenas fantasioso; é perigoso e totalitário.
Aliás, um exemplo recente ajuda a ilustrar o que digo. Segundo leio no jornal The Daily Telegraph, o Facebook encerrou a página do Britain First, um partido de extrema-direita do Reino Unido. O Twitter já tinha encerrado a conta do mesmo grupo. Mas quem é esse Britain First?
Se olharmos para os números reais, encontramos um clube de racistas e supremacistas brancos com 800 membros (eles dizem que são 6 mil) e com resultados eleitorais de 1%, mais coisa menos coisa.
Acontece que, no Facebook, os números são outros: a página tinha 2 milhões de “likes” – mais do que os “likes” dos partidos trabalhista e conservador juntos.
Esse sucesso explica-se por dois motivos: pela militância dos fanáticos na produção de “posts” aberrantes ou aparentemente “inofensivos” (como mostrar vergonha pelo “mayor” de Londres ser o muçulmano Sadiq Khan); e pelas partilhas maciças dos “posts” na rede.
Trocando em miúdos: são pessoas comuns, que nunca votaram no Britain First, que aproveitam o anonimato das redes sociais para libertarem os seus preconceitos.
Isso significa que o Facebook deveria ter cancelado a página?
Não creio. Para começar, não devem ser as redes sociais a censurar a liberdade de expressão. Devem ser os tribunais de um Estado de Direito. Se o conteúdo da página incitava ao ódio contra minorias —e, na minha opinião, incitava— só os magistrados poderiam decidir o seu encerramento.
Seja como for, o caso do Britain First confirma as palavras de Cármen Lúcia. Sim, deveria competir à justiça proibir crimes baseados no preconceito. E, não, nenhuma lei é capaz de transformar os seres humanos em anjos celestiais.
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