João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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'Liberdade de expressão' é mandar calar quem não pensa como nós?

Dias atrás, o presidente francês Emmanuel Macron condenou 'democracias iliberais' que crescem na Europa

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O leitor conhece o filme: uma universidade convida um palestrante “conservador”. O palestrante aparece no “campus”. Pouco depois do início da sua conferência, ou até antes, uma turba enlouquecida invade o espaço e impede qualquer debate. Em nome da “tolerância” – ou, melhor ainda, em nome da liberdade dos estudantes “virtuosos”.
 
“Liberdade de expressão”, para esses neo-jacobinos, não representa a possibilidade de escutar ideias distintas e tantas vezes incômodas. “Liberdade de expressão” é mandar calar aqueles que não pensam como nós.
 
Existem várias teorias para esses fenômenos crescentes. Mas o filósofo John Gray, em ensaio notável para o “Times Literary Supplement” intitulado “The Problem of Hyper-Liberalism” [o problema do hiper-liberalismo], oferece uma das reflexões mais sofisticadas sobre o fenômeno.

O presidente francês Emmanuel Macron
O presidente francês Emmanuel Macron - AFP

Gray começa por revisitar essas intolerâncias “universitárias” para dizer: à primeira vista, nada é mais contrário ao espírito “liberal” do que crianças histéricas proibindo a expressão de terceiros. Também à primeira vista, o liberalismo progressista foi suplantado por uma forma de fanatismo que cobre de vergonha os verdadeiros liberais.
 
Acontece que Gray discorda dessa versão. Para ele, o que se passa hoje em muitas universidades é o triunfo do “hiper-liberalismo”. Em suma, é o triunfo do liberalismo moderno levado até às últimas consequências.
 
Para entender essa tese, Gray socorre-se do principal nome do liberalismo moderno: John Stuart Mill (1806 – 1873). Sobretudo do Stuart Mill de “On Liberty” (1859), uma obra que, conscientemente ou não, operou uma importante transformação no próprio conceito (liberal) de liberdade.
 
Até Mill, a liberdade da tradição liberal indicava a liberdade dos seres humanos face à lei ou à coação de outros seres humanos. Eu seria livre na medida em que não era coagido intencionalmente por terceiros.
 
Com Mill, esta noção (negativa) de liberdade sofre uma metamorfose no seu caráter. O homem livre passa a ser o homem autónomo, ou seja, dono de uma vontade incorrompida pelas contingências e influências da história ou da tradição.
 
Por outras palavras: a minha “identidade” (a palavra favorita dos hiper-liberais) dispensa a opinião de terceiros ou qualquer outra forma de autoridade.
 
O problema, afirma Gray, é que esse projeto de “libertação”, estimável em teoria, ignora duas consequências sérias e potencialmente destrutivas.
 
Em primeiro lugar, aquilo que nos torna diversos não é uma “identidade” construída sobre o vazio. É a forma como transportamos na nossa “segunda natureza” o patrimônio de hábitos ou valores que são exteriores à nossa vontade.
 
Em segundo lugar, a adoração da liberdade como autonomia radical converte-se, ironicamente, numa forma de conformidade – ou, melhor dizendo, numa forma de pensamento único, debitado por clones hiper-liberais que rejeitam qualquer visão alternativa ao seu credo iluminado.
 
O liberalismo converte-se em “religião secular”. E, quando assim é, pensar de forma diferente não é uma decorrência natural de seres plurais. É uma heresia que ofende a igreja hiper-liberal. Em nome da (verdadeira) Liberdade, acaba-se com qualquer outra liberdade.
 
As consequências desse tipo de pensamento não se limitam a palestras canceladas em universidades. Dias atrás, o presidente francês Emmanuel Macron, em discurso aplaudido pela “intelligentsia” (hiper) liberal, condenou as “democracias iliberais” que crescem na Europa.
 
Para Macron, só é possível salvar a Europa dos “nacionalismos egoístas” pelo aprofundamento do “projeto europeu” e da sua “soberania”.
 
Atenção: longe de mim defender os governos que Macron criticou sem os nomear (Hungria e Polônia), muito menos o nacionalismo repelente de uma Frente Nacional, por exemplo. Só que esse não é o ponto.
 
O ponto é que Macron e os seus discípulos são incapazes de entender as raízes do iliberalismo e do nacionalismo crescentes, que eles tratam como uma aberração e um embaraço.
 
Como afirma John Gray, os hiper-liberais que criticam os movimentos populistas limitam-se a olhar para o povo como uma massa ignara e iludida.
 
Infelizmente, os hiper-liberais são cegos para o essencial: os movimentos populistas limitam-se a explorar as necessidades de uma população que o hiper-liberalismo nem sequer se digna a enfrentar – necessidades como a busca de segurança ou de mera sobrevivência económica.
 
E conclui Gray: “No liberalismo prevalecente da última geração essas necessidades foram descartadas como preconceitos atávicos que devem ser varridos sempre que se erguem no caminho de esquemas para um governo transnacional ou para um mercado global em expansão.”
 
No fundo, a atitude de sobranceria que Macron manifesta é muito semelhante à frase apócrifa de Marie Antoinette na Revolução Francesa: se o povo não tem pão, porque motivo não come brioches?
 
Todos sabemos como terminou esse café da manhã.

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