João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Médicos e monstros

Apagar o passado que nos ofende é uma missão paranoica e infinda

Ilustração
Angelo Abu/Folhapress

Se o leitor viajar para Nova York e der um passeio no Central Park, a estátua de J. Marion Sims já não está no lugar. Quem?

Entendo. Também eu desconhecia o nome e nunca prestei atenção à estátua nas minhas deambulações por lá. Mas parece que o dr. Sims foi um importante médico do século 19 e, abreviando a história, é considerado "o pai da ginecologia moderna".

Aplausos?

Nem por isso. Segundo os especialistas, as proezas científicas do dr. Sims foram testadas em mulheres escravas que nunca deram o seu consentimento para serem ratinhos de laboratório. Antes de ser médico, o dr. Sims foi um torturador.

A Prefeitura de Nova York, confrontada com as denúncias, decidiu remover a estátua. Hoje, os admiradores do dr. Sims devem rumar ao cemitério de Green-Wood, no Brooklyn, onde está a sua sepultura —e onde estará a infame figura.

Perante este caso, a pergunta óbvia não é saber se o dr. Sims foi um monstro moral. Qualquer pessoa com a sanidade em dia responde afirmativamente sem hesitar. O mesmo poderia ser dito sobre outro médico, Hans Asperger, que pelos vistos não se limitou a dar o seu nome a uma perturbação autista. Soube-se agora que também enviou muitas crianças com deficiência para o matadouro do Terceiro Reich.

A questão é outra: será que devemos remover da paisagem estátuas, monumentos ou edifícios que surgem manchados pela ignomínia do passado? Com a devia vênia à sensibilidade histérica dos contemporâneos, penso que não. Por dois motivos.

O primeiro é prático: apagar o passado que nos ofende com seu cortejo de horrores seria uma missão paranoica e infinda. Não falo da estátua. Falo das mil provas materiais que ficaram para os vindouros e que, analisadas à lupa, revelam sempre uma mácula qualquer, cometida sobre algo ou alguém.

Quando o leitor, turista extasiado, tira fotos nas pirâmides de Gizé ou no coliseu de Roma, será preciso lembrar que na sua "selfie" vão também os escravos egípcios e os cristãos devorados?

Não sou um fã incondicional de Nietzsche. Mas como discordar da sua premissa trágica de que a toda a civilização contém em si sementes de barbárie?

Ironicamente, as patrulhas de esquerda ou de direita tendem a reagir de formas igualmente falsas perante essa evidência. A esquerda, reduzindo a civilização aos seus atos de barbárie; a direita, extirpando a barbárie de qualquer relato glorioso sobre a civilização. Como é evidente, é possível acomodar essas duas dimensões para explicar o que somos —e fomos: bárbaros e civilizados.

Outro autor que verdadeiramente aprecio —Robert Louis Stevenson— já nos tinha revelado isso com outro médico e outro monstro: os famosos Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que conviviam no mesmo corpo em tensão permanente.

A história do Ocidente é a história dessa tensão. Pretender um mundo higienizado, onde nenhuma memória nos agride, remeteria os homens para o deserto do Saara. Isso, claro, se esquecêssemos os rios de sangue que um dia cobriram aquelas areias aparentemente imaculadas.

Mas existe um segundo problema com a pretensão de negar o passado: é não aprender nada com ele.

Disse que o médico e o monstro habitam o mesmo corpo em tensão permanente. Isso significa que a singularidade da civilização ocidental não está na capacidade para produzir monstros --um talento extensível a qualquer outra civilização conhecida.

A singularidade está na capacidade para suplantar esses monstros. Creio que era o filósofo Pascal Bruckner quem avisava: não podemos falar da inquisição sem falar do iluminismo. Não podemos falar da escravidão sem lembrar os movimentos abolicionistas. Não podemos falar dos totalitarismos políticos sem lembrar as democracias liberais.

Criamos venenos e curas para eles. E isso só será possível pela exposição dos nossos males, não pela sua piedosa ocultação. Não passaria pela cabeça de ninguém arrasar Auschwitz-Birkenau e construir por cima um campo de golfe.

A estátua de J. Marion Sims deveria ter ficado onde estava. Com uma explicação pública e suplementar sobre o médico: ali também havia maldade humana.

De resto, essa opção seria a única forma de prestar uma verdadeira homenagem às vítimas. Quem remove estátuas incômodas também leva para o silêncio quem não merece o esquecimento.

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