João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

'Ética é estarmos à altura do que nos acontece'

Se malinês que salvou bebê em Paris fosse desprovido de racionalidade, seu ato não teria o mesmo valor

O presidente francês, Emmanuel Macron (à esquerda), ao lado do imigrante Mamoudou Gassama, 22, em Paris - Thibault Camus/Pool via Reuters

O nome é Mamoudou Gassama. Em Paris, o imigrante do Mali viu um bebê pendurado na varanda. Escalou quatro andares e salvou a criança. O presidente Emmanuel Macron, depois de um encontro pessoal com o herói, garantiu-lhe a nacionalidade. É justo.
 
Justo e inquietante: sempre gostei dessas histórias de coragem física. Uma leitura freudiana diria que só admiramos aquilo que tememos não possuir. Talvez seja verdade. Embora, nessas matérias, Aristóteles seja melhor que Freud: a coragem física não esgota todos os tipos de coragem.
 
A coragem moral, por exemplo, pode ser mais difícil do que a coragem física. Ou, como diz um grafite numa estação de metrô em Lisboa, citando o filósofo Gilles Deleuze: “Ética é estarmos à altura do que nos acontece”. Até ver, tenho estado à altura do que me acontece. Acho eu. Ou então iludo-me eu.

Mas divago. Fiquemos pela coragem física. E fiquemos por Aristóteles. Na sua “Ética a Nicômaco”, o filósofo avisava: não confundamos a coragem com a temeridade. Coragem é a forma nobre de respondermos ao medo —e, ponto importante, à nossa própria covardia.
 
Se Mamoudou Gassama fosse desprovido de racionalidade, o seu ato não teria o mesmo valor. O herói sente medo; mas age contra o medo para cumprir um propósito maior.
 
Exatamente como os três amigos americanos —Alek Skarlatos, Anthony Sadler, Spencer Stone— que imobilizaram um terrorista no trem de Amsterdã para Paris, correndo perigo de vida. A história foi contada por Clint Eastwood em “15h17 - Trem Para Paris”.

 
Não é das melhores colheitas de Eastwood, admito. E, em termos dramáticos, também admito que a opção de Clint de usar os próprios amigos como atores do filme retirou grandeza artística à ação.
 
Mas entendo por que motivo o diretor não resistiu à história que espantou o mundo em 2015. A carreira de Clint como diretor (e também como ator) resume-se na nobreza do individualismo. Essa é a sua filosofia política: uma desconfiança pétrea face a grandes esquemas de transformação ou redenção das sociedades; uma fé, nem sempre pacífica ou recompensada, na decência comum do homem comum.
 
Como esquecer os seus “justiceiros solitários” —de Dirty Harry a Bill Munny de “Os Imperdoáveis”? Como esquecer o misericordioso Frankie Dunn de “Sonhos Vencidos”? Como esquecer, em suma, o mártir Walt Kowalski de “Grand Torino” (essa, sim, a última obra-prima de Clint Eastwood)?
 
Em “15h17 - Trem Para Paris”, voltamos a território conhecido: rapazes da Califórnia, viajando pela Europa, que no momento certo (ou errado, diriam os covardes) se encontram face a face com o dilema de uma vida. E que decidem agir, travando o mal com as próprias mãos. Razões?
 
O filme apresenta algumas, filmando a biografia dos três desde a infância. Uma educação religiosa explica parte do caráter. Uma certa admiração pelas virtudes militares explica outra parte. Engraçado: escrevo “educação religiosa” e “virtudes militares” —e sinto que pisei nos calos da sensibilidade pós-moderna, tão cheia de cinismo e covardia.
 
Clint Eastwood nunca foi indiferente a essa dimensão antiquada (e ofensiva) da “masculinidade” (sinto que pisei mais um calo). Mas o ponto central do filme, e dos filmes de Clint, é que essas virtudes “viris” (mais um calo?) não são adereços míticos de figuras míticas, que habitam as odisseias de Homero ou os filmes de Hollywood.
 
Elas existem no mais anônimo ser humano —gente como Mamoudou Gassama ou os três amigos americanos; gente que suplanta o medo por sentir dentro de si o apelo da rectidão.
 
Nesse sentido, entende-se a escolha do diretor de usar os próprios rapazes como atores. A mensagem de Clint é simples: poderia ser você. E, se fosse você, o que faria?
 
Não sei. Ninguém sabe. Mas, se Aristóteles estava certo, a coragem não é uma virtude consumada. É algo que cultivamos, praticamos, treinamos —​ao longo de uma vida.
 
Como se fossemos atletas da alma, preparando continuamente os músculos para o que der e vier. ​

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