João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Museu dos horrores

Uma história em preto e branco sempre fez as delícias de imperialistas

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Ilustração
Angelo Abu/Folhapress

Será possível construir em Portugal um Museu dos Descobrimentos? Explico melhor.

Tempos atrás, o atual prefeito de Lisboa inscreveu essa ambição no seu programa eleitoral. A ideia do socialista Fernando Medina era criar um espaço capaz de revisitar as aventuras e desventuras marítimas dos portugueses a partir do século 15.

A polêmica rebentou —e rebentou por causa da palavra descobrimentos. Historiadores vários, em prosas inflamadas, vieram publicamente denunciar a natureza errônea, paternalista e até racista do vocábulo. Os portugueses não "descobriram" nada porque, em rigor, os povos, as terras e até as águas já lá estavam.

Afirmar o contrário —no fundo, afirmar que os portugueses foram descobridores— transforma o Outro (índios, asiáticos, africanos etc.) em ator secundário e marginal da história.

Além disso, é preciso não esquecer que a palavra descobrimentos é demasiado branda para explicar o que aconteceu: um longo processo de violência, submissão e escravidão que só por piada pode ser confundido com um piquenique multicultural.

Grupos de ativistas afrodescendentes, recusando o Museu dos Descobrimentos, exigem antes um Museu da Escravatura ou um Museu da Resistência Negra. Como os próprios afirmaram em artigo no jornal Público, "não aceitamos um Museu construído sobre os ombros do silenciamento da nossa História, com o dinheiro dos impostos de negras e negros deste país".

Tenho acompanhado o debate e, aqui entre nós, confesso certo pasmo com a histeria reinante. Um pasmo irônico, digamos: aqueles que acusam o hipotético museu de racismo e imperialismo cometem, eles próprios, os pecados do racismo e do imperialismo.

Comecemos pela infame palavra. Descobrimentos denuncia um olhar eurocêntrico sobre o fenômeno? Não nego. Mas, antes de qualquer juízo moral, sempre olhei para a palavra como revelação de uma experiência particular: a dos portugueses que descobriram o que antes não conheciam.

É evidente que os povos, as terras e as águas já existiam antes dos navegadores lá chegarem. O planeta Terra, convém lembrar, também já existia antes da humanidade caminhar sobre ele.

O ponto, porém, é que esses povos, terras ou águas não existiam para os navegadores como realidade observável, tangível, imediata. A carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, é o relato de um descobrimento no sentido mais básico da palavra.

Se todos os povos têm direito à memória das suas experiências —o princípio sagrado do multiculturalismo—, como negar aos portugueses o direito a esse direito? E como sustentar, com cara séria, que o Outro é incapaz de entender esse direito?

Eis, em suma, o inusitado racismo de muitos historiadores: a transformação do Outro em sujeito analfabeto e débil, que fica melindrado e magoado quando um povo evoca a sua memória histórica para contar, precisamente, a sua história.

Mas as críticas ao Museu dos Descobrimentos não revelam apenas esse paternalismo racista de tratar o Outro como uma criança vulnerável. A ambição de reduzir as navegações portuguesas à infâmia da escravidão soa-me tão falso como transformar essas navegações em páginas imaculadas do gênio e da grandeza lusitanas.

Uma história em preto e branco sempre fez as delícias dos fanáticos —imperialistas brancos ou negros, tanto faz.

Acontece que não se responde à propaganda salazarista com novas formas de propaganda. A expansão marítima portuguesa não é pensável nem explicável sem o tráfico de escravos —e qualquer pessoa informada sabe disso.

Mas também não é pensável nem explicável sem os progressos culturais e científicos dos séculos 15 e 16, que não teriam ocorrido sem as navegações ibéricas.

Um hipotético Museu dos Descobrimentos deveria incluir todas as páginas do passado, e não apenas algumas. E, nesse quesito, justiça seja feita ao prefeito de Lisboa, que no desejado museu não excluía nenhuma das dimensões. Nem sequer "um núcleo dedicado à temática da escravatura".

Nada feito. Há críticos do museu para quem o nome é ofensivo; e depois há outros para quem um conteúdo exclusivo de horror não é ofensivo.

Que ambos discutam o museu invocando seriamente o "rigor histórico", eis a piada final —e fatal.

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