João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio, o meu amigo português

A noção de que existem vários valores e finalidades de vida concorrentes era uma verdade que ele conhecia e praticava

Perdi um amigo português. Eu sei, era brasileiro, mas não vamos estragar a história com pormenores. Chamava-se Otavio Frias Filho e, se digo que ele era português, é porque o recordo em Portugal, durante as conversas tidas em Lisboa e no Porto, quando ele parecia mais lusitano e patriota do que eu.

Lembro-me bem: com o meu pessimismo patológico, começava a narrar a longa galeria de horrores —políticos, culturais, existenciais— que a terrinha tinha para oferecer.

Ele, com paciência de santo, escutava tudo com um sorriso sardônico. Depois, com uma frase plena de inteligência e humor, demolia os argumentos como quem retira um doce das mãos de uma criança.

Mas ele não tinha apenas otimismo e afeto por Portugal. Tinha uma curiosidade que aterrorizava qualquer pessoa. Em solo luso, tinha por hábito questionar pormenores históricos, literários, políticos, artísticos, como se regressasse a casa depois de uma longa ausência, faminto por novidades.

De certa forma, ele era da casa. Em 1975, esteve em Portugal nos “meses quentes” da revolução —período que ele descreveu como “uma simbiose entre Revolução Francesa e Revolução Soviética, encenada ao vivo”. E teve como cicerone um dos grandes colunistas portugueses do século 20: Victor Cunha Rego (1933-2000).

 

Exilado no Brasil durante o salazarismo, Cunha Rego escreveu na grande imprensa paulistana, Folha inclusa, e foi uma figura marcante para o jovem Otavio.

Ele próprio, em prefácio para o livro definitivo de Cunha Rego publicado recentemente (“Na Prática a Teoria é Outra”, ed. Dom Quixote), deixou um testemunho belíssimo sobre essa influência —pessoal, intelectual e até bibliográfico. “Ler o livro de Orwell, naquela idade”, escreveu o Otavio sobre o romance “1984” que Cunha Rego lhe oferecera, “me vacinou contra toda forma de governo autoritário".

É uma boa vacina, que foi complementada por outras: a vacina contra a preguiça intelectual de nos refugiarmos em dogmas ou ideologias; a vacina contra a seriedade tosca, pomposa, mofenta; a vacina contra o fanatismo de quem acredita ter nas mãos a chave da existência humana.

O Otavio era um cético e, mais importante ainda, um verdadeiro pluralista. Bem sei que essa palavra está na moda, embora seja praticada por uma minoria (a maioria continua tão monista e autoritária como sempre; basta olhar para a política atual).

Mas a noção de que existem vários valores e fins de vida —concorrentes, igualmente válidos, nem sempre conciliáveis entre si— era uma verdade que o Otavio conhecia e praticava. Inteligência, alguém dizia, é ter duas ideias contraditórias na cabeça e, apesar disso, continuar a funcionar. O Otavio passava o teste com distinção.

Isso perpassa por todos os seus livros —e “Queda Livre” (2003) continua a ser o meu preferido, exemplo maior de “new journalism” em língua portuguesa que tive o gosto perverso de apresentar na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, com o Otavio ao lado, a querer fugir dos holofotes. 

Mas o ensaísta e o dramaturgo não podem fazer esquecer o cronista, um cronista notável, capaz de condensar um assunto em poucas linhas com as doses certas de originalidade, erudição e humor —a santíssima trindade do gênero. A sua crônica “É tudo ladrão”, por exemplo, compilada em “De Ponta-Cabeça” (2000, ed. 34), é uma descrição literária perfeita sobre a política como ela é.

Alguns dias atrás, disse-lhe que viria a São Paulo para dar aulas. E ficou combinado que nos veríamos nesta semana, assim a sua saúde o permitisse, para pôr a conversa em dia. Aliás, eu já trazia no bolso os meus habituais queixumes sobre a política lusitana, só para o animar um pouco.

Cheguei na quarta. O meu amigo tinha morrido na véspera.

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