João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

A escuridão perpétua

O chicote refina um autor; o elogio fácil alimenta nele uma excelência infundada

Sou leitor da New York Review of Books desde que cheguei à idade da razão. Nunca desisti. O jornal é tendencialmente de esquerda? É. Comete os exageros típicos da tribo? Comete.

Mas, como diria Nietzsche, esse monstrinho com quem mantenho uma relação de amor e ódio, não há nada mais importante do que termos a coragem de pensar contra as nossas convicções.

Esse é um dos motivos pelos quais a minha biblioteca tem mais autores progressistas do que conservadores. Temer o contraditório é sempre uma revelação de primitivismo mental. Sou leitor da revista por razões estéticas e intelectuais —exatamente por essa ordem. Primeiro, quero beleza; depois, inteligência.

Os autores da Review nunca desiludiram: de Frank Kermode a Isaiah Berlin, de Gore Vidal a Ian Buruma, pela Review passaram as melhores cabeças do século 20.

E os responsáveis pela proeza são Robert Silvers e Barbara Epstein, fundadores e editores, retratados no documentário “O Argumento de 50 Anos”, de Martin Scorsese e David Tedeschi. Recomendo.

A publicação nasceu em 1963 com um simples propósito: fazer crítica literária. Pode parecer redundante. Não era.

Anos antes, Elizabeth Hardwick fazia a autópsia da concorrência, sobretudo do New York Times Book Review, e declarava o declínio da crítica em termos ácidos. Como lembra o filme, citando Hardwick, a crítica literária em inícios da década de 1960 oscilava entre elogios e condenações bastante débeis. O que faltava? Palavras de Hardwick: “envolvimento”, “paixão”, “excentricidade”. “O drama da opinião.”

Angelo Abu/Folhapress

Silvers e Epstein trouxeram esse drama para o debate porque optaram por criticar o “status quo”, não por fazer parte dele. Essa opção preservou uma certa independência de espírito, permitindo enfrentar as múltiplas “vacas sagradas” de cada tempo literário ou político.

As polêmicas de Edmund Wilson com Nabokov, de Edward Said com Bernard Lewis, de Gore Vidal com Norman Mailer —seriam possíveis no tempo morno em que vivemos? Aliás, não vivemos exatamente um tempo morno. Vivemos um tempo enjoativo, delicodoce, de uma bajulação mentecapta.

É sábado. Deitado na cama, vou deambulando pelas publicações habituais. Suspiro.

É cansativo ler tantos textos sobre tantos gênios. Cada livro que sai é uma obra-prima definitiva. O cenário é tão uniforme que procuro, lá pelo meio, a existência de um autor medíocre. Só para descansar as vistas.

Não encontro. Só há gênios (As críticas negativas, quando existem, são apenas ajustes de contas pessoais que tresandam a ressentimento por todos os poros.) Como explicar o absurdo?

Semanas atrás, Camila von Holdefer escreveu um importante artigo nesta Folha no qual, depois de revisitar Elizabeth Hardwick, avisava: “networking” não é crítica. Pois não. Mas é isso que vejo, em todo lado por onde me arrisco.

Bob Silvers e Barbara Epstein queriam estar à margem do “status quo”. A crítica literária contemporânea quer fazer parte do “status quo”, nunca beliscando uma editora, um autor, um festival literário; e nunca pondo em perigo a possibilidade de fazer parte de um júri, de receber um prêmio ou de também ser incensada pelos autores que (não) critica, num perverso “quid pro quo”.

As consequências da covardia são múltiplas. Para começar, essa atitude começa por ser um insulto aos leitores: quando se definem como obras-primas livros que, na esmagadora maioria, são apenas legíveis (ou nem isso), a crítica só contribui para o analfabetismo que deveria combater.

Por outro lado, a ausência de uma cultura crítica exigente acaba por prejudicar a própria qualidade da produção intelectual. Por paradoxal que pareça, os Estados Unidos podem oferecer Philip Roth, Tom Wolfe ou John Updike porque todos eles foram generosamente vergastados pelos críticos nativos.


O chicote refina um autor. O elogio fácil alimenta nele a crença infundada na sua própria excelência.

É isso que corrói grande parte da literatura de língua portuguesa: um autocontentamento que seria cômico se não fosse tão triste. Que estímulo tem um autor brasileiro ou português para se libertar da sua habitual mediania quando tudo em volta —crítica, prêmios, festivais e outros circos— proclama que ele é um gênio?
Não é apenas a fome que mata o corpo. O excesso de açúcar pode ter o mesmo resultado.

No fim do documentário, alguém cita Samuel Johnson. Que nos dizia algo sobre a literatura que pode ser aplicado ao exercício da crítica: “A literatura é uma espécie de luz intelectual que, tal como a luz do sol, permite-nos ver as coisas de que não gostamos; mas quem desejaria escapar a objetos desagradáveis, condenando-se a uma escuridão perpétua?”

Pelo visto, muita gente. Hoje, vivemos nessa escuridão.

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