João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Hillary Clinton perdeu as eleições americanas em 2016 depois do seu famoso discurso contra a “cesta dos deploráveis”. Para Hillary, metade dos eleitores de Trump fazia parte dessa cesta.
 
Pasmei. Não com o insulto; com a falta de inteligência de uma candidata que insulta eleitores quando deveria estar mais preocupada em conquistá-los.
 
Talvez os “deploráveis” nunca votassem em Hillary. Mas a “cesta” teria pelo menos a outra metade —qualquer coisa como 30 milhões de americanos; ou, então, metade da metade. É preciso uma mistura invulgar de estupidez e prepotência para alienar 15 milhões de potenciais eleitores.
 
Verdade que Hillary não é caso único. Semana passada, o comissário europeu para os Assuntos Econômicos e Financeiros, um personagem que dá pelo nome de Pierre Moscovici, alertou o continente para a emergência de “pequenos Mussolinis”. Raciocínio de Moscovici: dez países da União Europeia já têm partidos de extrema direita nos seus governos. A Suécia, depois do espantoso resultado dos Democratas suecos, pode ser o 11º. Por enquanto.
 
Mas a melhor forma que Moscovici encontrou de a) entender o fenômeno e b) combatê-lo racionalmente foi, uma vez mais, através do insulto. Não apenas aos governos em questão; mas a 40 milhões de europeus (estimativa conservadora) que votam nesses partidos.
 
Uma interpretação bondosa levaria qualquer um a concluir que a inteligência dos políticos nunca produziu grandes milagres. O problema é que os “intelectuais” vão pelo mesmo caminho: quando não insultam, cedem covardemente aos urros da internet.
 
David Remnick é um caso: onde está o fabuloso jornalista que nos deu “Lenin’s Tomb” (uma impressionante história da União Soviética e do seu estertor) e os melhores ensaios políticos das últimas duas décadas?
 
Mistério. Os fatos são conhecidos: Remnick, editor da New Yorker, convidou Steve Bannon, um dos estrategos da vitória de Trump, para uma entrevista pública.

David Remnick, editor da revista norte-americana The New Yorker - Getty Images


 
Mas, em 24 horas, Remnick retirou o convite porque as redes sociais não gostaram. Veja bem: de um lado, Remnick tinha um homem que foi responsável pela eleição do presidente dos Estados Unidos —ou, para regressarmos aos números, alguém que conseguiu convencer 63 milhões de americanos a votarem em Trump; do outro, meia dúzia de “celebridades” e uma massa indistinta de histéricos que pediram o silenciamento de Bannon.
 
Remnick alinhou com os segundos. Serei o único a ver aqui uma derrota do jornalismo livre?
 
Ponto prévio: nunca gostei de fenômenos “populistas”. Desde que me conheço, as expressões da “vontade geral” sempre me provocaram repulsa extrema.
 
Nesse quesito, os meus críticos têm razão: sempre fui um “elitista. Democracia, sim, mas com uma qualificação importante: o voto é o início de uma conversa, não o seu termo. Sem instituições independentes —judiciário, mídia etc— o mero ato eleitoral pode ser um caminho para a tirania. Como já foi —repetidamente, ao longo da história.
 
Mas, se eu tenho uma boa desculpa para deplorar a “vontade geral”, que desculpa tem a esquerda progressista, que sempre delirou com ela? De que se queixa a esquerda, afinal, quando o povo, o bom povo, o nobre povo, o sábio povo, vota como vota?
 
Obviamente, e com a devida vênia ao patrono Rousseau, parece que a “vontade geral” só deve ser respeitada quando escolhe o caminho “certo”. E quem define esse caminho? Os mandarins iluminados, claro.
 
Para mim, a democracia é a pior forma de governo, excetuando todas as outras (Churchill “dixit”). Para os mandarins, a democracia é a melhor forma de governo —se o povo votar corretamente. Se o povo não votar corretamente, então a democracia não presta.
 
É com essa mentalidade que as almas progressistas pretendem combater o extremismo político —na Europa e no mundo. Nenhum esforço para entender as causas reais que levam milhões de pessoas a seguir os messias do momento. Nenhum esforço para confrontar e criticar racionalmente esses messias. Só insultos —ou, em alternativa, a fuga e a mordaça.
 
No fundo, é a atitude típica das crianças que temem a existência de monstros no quarto escuro —e vão a correr procurar refúgio na cama dos pais. Não seria melhor acender simplesmente a luz? Com certeza. Mas os adultos nem se dão ao trabalho.
 
O extremismo, esse, agradece a escuridão e vai avançando sem freio.

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