João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

A primeira vítima do pensamento politicamente correto é o humor

Tentativa de abolir qualquer possibilidade de riso só produz uma nova forma de comicidade

Em cartum do Herald Sun, Serena Williams pula sobre a raquete após discussão com o árbitro na final do Aberto dos EUA
Cartum do jornal Herald Sun - Reprodução

Meses atrás, correu pelo mundo um cartum de um desenhista australiano que teve a ousadia de retratar Serena Williams na final do Aberto dos Estados Unidos, fazendo birra e pisoteando a raquete. O desenho, disseram os iluminados, retratava Serena Williams com traços racistas —lábios grossos, cabelo frisado, ancas generosas.

Fui ver. Confirmei. O desenho era insultuoso. Não por motivos racistas. Mas porque se tratava de uma caricatura. E a caricatura, por definição, amplifica as singularidades físicas de qualquer indivíduo até ao ridículo.

Sei do que falo. Já tive várias caricaturas a imortalizar as minhas feições de Adonis. Em todas elas, por razões misteriosas, a minha testa adquire proporções grotescas, dignas do monstro do dr. Frankenstein (na versão de 1931). É um insulto.

Infelizmente, parece que esses insultos não são mais tolerados quando o alvo do humor pertence a uma qualquer minoria.

Depois do cartum polêmico, li no Diário de Notícias português declarações de dois grandes cartunistas lusos que partilhavam com o leitor a dificuldade crescente em desenharem celebridades negras.

André Carrilho, um gênio que espalha o seu talento pela Vanity Fair e outras publicações semelhantes, confessa que uma caricatura do ator Denzel Washington de 2012 seria impublicável em 2018. (Entre parêntesis: Carrilho é autor da capa do meu primeiro livro de crônicas. Uma caricatura, sim: testa gigantesca, cara pálida etc. e tal.)

O ilustrador Nuno Saraiva concorda com Carrilho: os editores, hoje, só aceitam caricaturas de “negros caucasianos”, ou seja, negros com feições de brancos. Os lábios têm de ser mais finos; o cabelo mais liso; as feições menos africanas etc. etc.

O pensamento politicamente correto pensa que isso é respeito. Não é. É insulto racista: só um racista poderia pensar que negro bom é negro branco.

Outro exemplo? Leio no The Times que os estudantes da Universidade de Kent fizeram uma lista dos trajes que não serão mais tolerados nas festas universitárias.

Pessoal vestido de índio (ou caubói); padre (ou freira); com um “sombrero” mexicano (ou imitando Harvey Weinstein —juro, não inventei; como será esse traje?) será barrado. Tudo em nome da “sensibilidade” das vítimas que essas roupas evocam.

Pelo contrário: quem quiser ser homem das cavernas ou alienígena tem entrada garantida. O primeiro está extinto. O segundo ainda não apareceu. Não há risco de ofensa, pensam os estudantes, acreditando genuinamente que a) eles próprios não são homens das cavernas e b) eles próprios não exibem uma inteligência alienígena quando censuram com histeria puritana.

A primeira vítima do pensamento politicamente correto é o humor. Mas, nessa tentativa de abolir qualquer possibilidade de riso, as patrulhas só conseguem produzir uma nova forma de humor. O fato de ele ser involuntário só reforça a intensidade das minhas gargalhadas.

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