João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Anjos pornográficos

O órgão sexual mais importante que temos é a imaginação

Abu para Coutinho de 02.out.2018
Angelo Abu

A vida sexual dos millennials não se recomenda. Não sou eu quem o diz. É o Times de Londres, que partilhou um estudo detalhado sobre o assunto.

Quando pensamos na tribo, imaginamos vidas liberais e modernas, onde o sexo rola fácil entre os sócios do clube. Pena não ser verdade. Parece que 25% dos casais na casa dos 30 têm existências castas, ou quase: menos de dez relações por ano.

Eu sei, leitor: falamos do Reino Unido. Como diz o bordão, "no sex, please, we're English". Mas é importante lembrar que, no Reino Unido, habita hoje o mundo inteiro. Que dizem os especialistas dessa fome internacional?

Duas reflexões merecem destaque. Para começar, o ritmo da vida moderna e a precariedade da "economia líquida" não casam bem com o romantismo a dois (ou a três).

Além disso, é preciso ter em conta que os millennials foram alimentados, desde tenra idade, com um excesso de pornografia que os deveria habilitar para proezas homéricas.

Pelos vistos, não habilitou. Pior: é precisamente o irrealismo das proezas homéricas que eles viram nas telas que inibe a "performance" real. Moral da história?

Vivemos a agonia do Eros no meio de tanta liberalidade. E se falo em "Agonia do Eros" é porque existe um livro com esse título que os millennials deveriam ler. O autor é Byung-Chul Han e já chegou ao Brasil.

Como explicar essa agonia? Existe uma resposta automática que as melhores cabeças gostam de debitar: no mundo das possibilidades infinitas, nunca existe uma entrega romântica total. Há sempre o fantasma das vidas não vividas (e dos homens e das mulheres que ainda não conhecemos) que retira ao interesse romântico a sua urgência e perpetuação.

O professor Han discorda. O problema não está na nossa impermanência, saltitando de caso em caso com medo de perder a festa. O problema está no "desaparecimento do outro", que deixa de existir em nós e para nós.

Vivemos em "sociedades de rendimento", ou seja, sociedades em que os indivíduos buscam desesperadamente as medalhas da carreira, da riqueza ou do estatuto. Aparentemente, isso é uma manifestação de liberdade: eu, senhor do meu destino, lanço-me no mundo para conquistar o meu lugar.

Mas o "sujeito do rendimento" não é livre. Ele é apenas escravo de si próprio. Contrariamente ao que sugeria a caricatura marxista, já não existem exploradores e explorados. Hoje, essas duas categorias fundiram-se no mesmo indivíduo. A luta de classes, se alguma vez existiu, existe agora na mesma alma.

Resultado: sem a possibilidade de culparmos o capataz exterior, rapidamente concluímos que o capataz somos nós. Eis uma visão infernal que a "Sociedade do Cansaço" (outra categoria de Han, analisada em ensaio com esse título) representa na perfeição: esgotamo-nos porque não conseguimos parar de nos esgotar. Pelo menos, até a exaustão depressiva nos jogar no tapete.

Mas o "desaparecimento do outro" não acontece apenas porque estamos encerrados em nós próprios, nessa corrida louca para nos libertarmos e escravizarmos. Byung-Chul Han dedica algumas páginas magistrais à pornografia. Para sentenciar: "O obsceno, no pornô, não consiste num excesso de sexo, mas no fato de nele não haver sexo".

Verdade. O sexo depende da nossa fantasia erótica. Para usar uma linguagem bem crua, antes de querermos comer o outro é preciso fantasiar o outro. Mas como fazer isso, se uma cultura de exposição permanente foi entorpecendo o órgão sexual mais importante que temos —a imaginação?

A esse respeito, Byung-Chul Han cita "The Gioconda of the Twilight Noon", conto magistral de J.G. Ballard. É a história de um homem que se retira para uma casa de praia para recuperar de uma doença dos olhos.

Com o tempo, a privação da visão desperta nele uma tendência para o sonho que o encanta e arrebata. Mas quando volta a experimentar a luz da realidade, é como se a invasão do sol prometesse "queimar as suas fantasias". Desesperado com essa ameaça, o homem acaba por se cegar. É a única forma de continuar a viver naquela "escuridão visível".

Em interpretação antiplatônica, conclui Byung-Chul Han: o homem destruiu os seus olhos para ver mais.

Longe de mim recomendar métodos tão drásticos para aquecer o leito dos millennials. Mas desconfio que a única forma de animar esses sepulcros passa por "ver mais" —no caso, o ente desaparecido.

Isso implica que o "sujeito do rendimento" é capaz de sair da valsa narcísica onde baila dia e noite; e de perceber, talvez pela primeira vez, que o desejo só existe e persiste para quem tem imaginação.

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