João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Um mundo de bebês editados geneticamente será irreconhecível

O problema, suspeito, é que haverá consequências imprevistas dessa engenharia ambiciosa

Será que um pesquisador chinês conseguiu editar geneticamente bebês? Não sabemos ao certo. Mas, em caso afirmativo, era só uma questão de tempo. Se a história da humanidade ensina alguma coisa é que a possibilidade técnica é mais forte do que a prudência ética.
 
He Jiankui, o autor da proeza, sabe disso: ele inventou a fórmula, alterando os embriões de sete casais; a sociedade que decida o que fazer agora.
 
E a sociedade, aposto de olhos fechados, caminha no sentido dessa perfeição desejada. Julian Savulescu, um eticista de Oxford que tem dominado os debates sobre “engenharia genética”, defende há muito que “produzir” bebês mais perfeitos é a história da civilização.

Desde o tempo das cavernas, os seres humanos foram escolhendo os seus parceiros de acordo com a aptidão física dos mesmos. A sobrevivência dependia disso.
 
Hoje, admito que essas prioridades estão um pouco mitigadas. Pelo menos, é a esperança dos feios e raquíticos. Mas Savulescu não desarma: quando procuramos “imperfeições” nos fetos para os podermos descartar, estamos a praticar uma forma de “eugenia liberal”, que não pode ser confundida com qualquer “eugenia de Estado”. São os indivíduos, e não o poder político, quem seleciona os exemplares mais perfeitos.
 
Se, um dia, for possível alargar essa escolha a outros domínios físicos ou mentais –ter um super-filho, com Q.I. de Einstein, feições de Brad Pitt e vigor físico de Usain Bolt– só um ingênuo acredita que uma dúvida ética vai frear o entusiasmo pela procriação “à la carte”.
 
Aliás, nos seus textos, Savulescu é brutal: será um dever dos pais melhorar geneticamente os filhos, da mesma forma que é dever dos pais vacinar as crianças e proporcionar todos os cuidados médicos e educacionais disponíveis. A engenharia genética será apenas um passo mais na normal relação pais-filhos.
 
Admito que Savulescu tenha razão. Basta ver a forma como muitas famílias ocidentais (e obviamente afluentes) tratam as suas crias: como se fossem potros de competição.  
 
O problema, suspeito, é que haverá consequências imprevistas dessa engenharia ambiciosa.
 
A primeira é que as desigualdades econômicas, que existem desde o início dos tempos, continuarão até ao fim deles. O que significa que a engenharia genética, acessível a uma elite, irá introduzir um novo fator de discriminação social entre seres humanos “melhorados” e seres humanos “normais”.
 
Não custa imaginar que os seres humanos “normais” habitarão um planeta distinto de pobreza, ignorância e doença.
 
Claro que o Estado, sempre esse deus mítico, poderá intervir no processo, garantindo intervenções genéticas para todos. Mais: como tem defendido o filósofo Robert Sparrow (contra Savulescu), é perfeitamente possível imaginar que, para poupar gastos no sistema de saúde, o Estado pode até obrigar os pais de filhos “normais” a dar uma melhorada no genoma dos filhos. Se isso acontecer, a “engenharia liberal” de Savulescu transforma-se em nova “eugenia de Estado”.
 
Por último, e mesmo que todos tenham acesso às proezas da manipulação genética, isso pode significar o fim da diversidade humana. Argumenta o mesmo Robert Sparrow, e argumenta bem, que uma vez encontrado o melhor genoma –a poção mágica, em suma– o passo seguinte será replicá-la. Seremos todos perfeitos; seremos todos iguais, como robôs na linha de produção.
 
Há precisamente duzentos anos, Mary Shelley publicava “Frankenstein”. O livro pode ser lido como uma advertência séria às ambições impensadas da ciência, personificadas em Victor Frankenstein, o médico que cria o monstro.
 
Mas essa é a mensagem-cliché que menos me interessa. O que sempre me fascinou em “Frankenstein” é a humanidade do monstro: a tristeza dele ao ser repelido; a busca desesperada por uma companhia; a revolta perante a impiedade do seu “pai”.
 
Por outras palavras: é a imperfeição do monstro que o torna humano. Porque é a imperfeição que nos torna humanos, ou seja, despertos para a compaixão, para o amor, para o riso e para as lágrimas.
 
Um mundo de bebês editados geneticamente é possível e até provável. Mas é um mundo pós-humano, que será irreconhecível para mim.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.