João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Bons selvagens, maus selvagens

Toleramos os de Sentinela mas não os que querem sentinelas nas fronteiras

Acompanho com interesse a saga de John Chau. Corrijo. Acompanho com interesse a saga do corpo de John Chau, o evangelizador de 26 anos que partiu para uma ilha remota do oceano Índico com o propósito de "cristianizar" uma tribo primitiva.

Não correu bem. John não terminou no espeto, como os seus antepassados missionários em outras partes remotas. Mas também não regressou mais ao mundo dos vivos.

Dizem os pescadores que o levaram até a ilha de Sentinela do Norte, a mais de 1.000 km do continente indiano, que o cadáver foi enterrado na praia. Provavelmente, depois de uma chuva de flechadas.

Ilustração de Angelo Abu para João Pereira Coutinho de 4.dez.2018.
Angelo Abu

Agora, a questão está em saber se o corpo deve ser recuperado e, em caso afirmativo, como. Não será fácil. A tribo é hostil e a presença de estrangeiros, com seus vírus e doenças, é hostil para ela. Sempre foi. Temos um impasse.

Lamento, leitor: não sei como resolver o impasse, embora defenda que o corpo deva ser recuperado. Não o fazer seria uma triste rendição dos valores mais básicos da sociedade —como dizer?— "civilizada". Mas esse não é o ponto.

O ponto é que tenho lido dezenas e dezenas de textos —como dizer?— "progressistas" que apontam no mesmo sentido: se a tribo não quer ser perturbada, respeitemos a vontade da tribo. E respeitemos, já agora, a lei indiana que proíbe essas aproximações.

Começo por dizer que concordo com o argumento. Mas eu, confesso, nunca fui exemplo para ninguém em minha misantropia libertária.

"Não perturbe" não é apenas a frase mais bela que é possível encontrar em quartos de hotel (a segunda mais bela é "temos minibar"). É o mandamento político básico das minhas tábuas sagradas. Talvez seja por isso que vou colecionando, em várias línguas, esses avisos que penduramos nas portas. Mas divago.

Ou não divago. Porque as mesmas almas que defendem o respeito absoluto, dir-se-ia até sagrado, pela vontade de uma tribo em não ser perturbada por estranhos são precisamente as mesmas que negam esse direito às "tribos ocidentais" quando o assunto é imigração.

Ponto de ordem, antes de o leitor desmaiar de fúria: as democracias em que vivemos não são uma tribo; e os fluxos migratórios, para usar a expressão polida, são legítimos e, em certos casos, até necessários.

Mas é perfeitamente possível afirmar tudo isso e, ao mesmo tempo, reconhecer e até respeitar as ansiedades de quem não pensa como nós. E que vê na imigração, sobretudo quando irrestrita, uma ameaça econômica, cultural e de segurança.

Essa foi a tarefa de David Goodhart em "The Road to Somewhere: The Populist Revolt and the Future of Politics". Apresentações: Goodhart é um liberal de esquerda, fundador e diretor da revista "Prospect".

Mas o autor se tornou "persona non grata" entre a sua tribo só por argumentar que a sociedade britânica pode ser dividida em duas classes: os "anywheres" e os "somewheres".

Os primeiros representam uma população mais jovem, mais educada, definitivamente urbana e que se sente à vontade em qualquer canto do globo que tenha internet e Starbucks, o que obviamente exclui a ilha de Sentinela do Norte.

Os segundos, que constituem a maioria da população, são mais velhos, menos educados e emocionalmente ligados à sua terra, às suas tradições —à "nação", para usar a palavra maldita.

Precisamente porque pertencem a algum lugar, os "somewhere" olham para a globalização —econômica, mas também demográfica— com menos abertura de espírito.

Para Goodhart, a política britânica do pós-Segunda Guerra sempre conseguiu um compromisso razoável entre as aspirações dos primeiros e os receios dos segundos. Pelo menos, até ao dia em que os "anywheres" tomaram conta do pedaço, ignorando e desprezando metade da população "somewhere". Resultado?

O "brexit'"(no Reino Unido) e as revoltas populistas (na Europa continental ou nos Estados Unidos). Sem um novo compromisso entre ambos, a democracia liberal terá o mesmo destino do malogrado John Chau. A sepultura.

E será possível esse compromisso? Mistério. Até o momento, tudo que vejo é uma tolerância infinita pelos "bons selvagens" da ilha de Sentinela do Norte e uma intolerância cega pelos "maus selvagens" que querem sentinelas nas suas fronteiras. Rousseau explica, claro.

É por isso que os maus selvagens podiam imitar os bons e, com um osso no nariz, passar a usar arco e flecha. Tenho a certeza que tudo seria perdoado, desde que não optassem pelo cardápio canibal. O veganismo da moda a isso obriga.

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