João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Na prática a teoria é outra

O problema do populismo não está nos seus princípios, mas nas consequências mensuráveis

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1. A palavra populismo causa histeria entre o auditório culto. Entendo. Mas, se ficarmos apenas pela teoria, é perfeitamente razoável defender o populismo em determinadas circunstâncias históricas.

Se, como dizem os sábios, o populismo é uma espécie de ideologia em que o líder defende os verdadeiros interesses do povo contra uma elite distante ou corrupta, uma certa dose de populismo pode ser necessária para repor as regras do jogo democrático.

Avenida Paulista em 28 de outubro de 2018, data do segundo turno das eleições - Miguel Schincariol/AFP

Basta pensar no Leste Europeu sob o domínio comunista —um exemplo que Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser defendem no seu pequeno tratado sobre o assunto (“Populism: A Very Short Introduction”).

Lech Walesa, na Polônia, ou Václav Havel, na Tchecoslováquia, eram líderes populistas contra a elite moscovita —e ainda bem.

Saber se o populismo é bom ou mau, para usar a terminologia infantil, não deve ser apenas uma mera questão teórica. É preciso olhar para as consequências políticas do ideário.

Nos casos de Walesa ou Hável, o populismo de ambos fez-se em nome da democracia liberal contra a tirania. Sobre os populistas de hoje, aplica-se o mesmo raciocínio: o que resultou das suas palavras, atos ou omissões?

Yascha Mounk e Jordan Kyle publicaram um artigo na revista The Atlantic que resume algumas das suas conclusões empíricas.

Os autores olharam para 46 líderes populistas em 33 democracias no período entre 1990 e 2018. Os sinais não são animadores.

Para começar, os líderes populistas tendem a se perpetuar no poder: a média é seis anos e meio contra os três anos dos democratas “normais”.

Além disso, 50% dos líderes populistas analisados reescreveram, na totalidade ou em parte, as respectivas constituições com o fino propósito de enterrar a limitação de mandatos ou de suspender o poder moderador do sistema de “checks and balances”.

Como consequência, verifica-se uma regressão mais acentuada da “qualidade da democracia” quando existem populistas na praça: uma regressão de 7% na liberdade de imprensa; de 8% nas liberdades civis; de 13% nos direitos políticos.

Em matéria de corrupção, a besta negra do populista clássico, 40% dos líderes populistas sob estudo estão ou estiveram indiciados pela prática de crimes.

Moral da história?

O problema do populismo contemporâneo não está nos seus princípios, muito menos na sua lógica eleitoral. Está nas consequências mensuráveis da má governação.

Saber se essa tendência se mantém no futuro é pergunta para angustiar os democratas liberais. 

2. Assisto a “Roma”, de Alfonso Cuáron, e pasmo com o anacronismo do tema. Superficialmente, o filme revisita a infância do diretor e as mulheres que a habitaram: a mãe e a avó, sim, mas sobretudo a empregada, que na história dá pelo nome de Cleo (Yalitza Aparicio).

Todas elas são figuras fortes, estoicas, sofridas, ao contrário dos machos, invariavelmente covardes e débeis (“comme d’habitude”, acrescento eu). Mas o anacronismo de que falo é outro e merece uma breve meditação.

A história dos últimos 300 anos poderia ser contada sob o ângulo da “autonomia”. O projeto liberal, e sobretudo o liberalismo político moderno, fez da autonomia individual a sua causa sagrada.

Verdade: diferentes liberais concederam ao conceito roupagens distintas. A libertação prometida se fazia contra os poderes tradicionais; contra a pobreza e a ignorância; ou simplesmente contra qualquer ligação social, familiar, sentimental, que nos limita ou obriga.

“Roma” questiona o dogma e, mais, por meio de Cleo, da sua dedicação à família, apresenta-nos uma vida que está longe, muito longe, das emancipações triunfais do “homo liberalis”.

Nesse sentido, e até pelas semelhanças temáticas, é inevitável a comparação entre “Roma” e “Que Horas Ela Volta?”.

Gostei do filme de Anna Muylaert. Mas a história de Val (Regina Casé) obedece ainda a esse imperativo de libertação –no caso, a libertação da empregada da casa dos patrões, reduzidos a dois clichês burgueses de insensibilidade (ela) ou apatia (ele). “Que Horas Ela Volta?”, apesar dos seus méritos, é um filme que não resiste à tentação da ideologia.

“Roma” pertence a outro universo precisamente por recusar a voragem moralista. Nem a família é uma caricatura burguesa nem os empregados são caricaturas proletárias. Todos são como são, sem as máscaras habituais do cinema “engagée”.

E, sobre Cleo, a suprema heresia: será que a felicidade também se faz por apego a algo, ou a alguém, e não necessariamente pela mera renúncia narcísica a tudo aquilo que não foi feito à nossa imagem e semelhança?

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