João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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O amor é uma construção burguesa?

Slavoj Zizek revela bem como são limitadas as cabeças ideológicas

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O filme “Roma” tem dez indicações para o Oscar. Merecido. Como já escrevi nesta Folha, estamos na presença de um objeto estranho: um filme que abandona os clichês ideológicos das “relações de classe”, optando antes por um retrato sóbrio sobre tudo aquilo que nos liga a algo, ou a alguém. O amor é uma construção burguesa, como diriam os marxistas?
 
Alfonso Cuáron tem uma inteligência muito acima da dos marxistas —e isso vê-se em “Roma”.
 
Fatalmente, Slavoj Zizek apareceu para salvar a honra do convento. Escreveu o filósofo na Ilustríssima que “Roma” lhe deixou um “gosto amargo” na boca. Sim, ele concorda com as qualidades estéticas da obra. Mas cuidado: não devemos aplaudir o filme pelos motivos errados!
 
Para Zizek, “Roma” é uma denúncia —sutil, tão sutil que provavelmente nem existe— da hipocrisia burguesa. Aquela família “mimada” de classe média (alta) parece aceitar Cleo, a empregada, como parte do clã. Mas isso tem como único objetivo poder explorá-la melhor —física e emocionalmente.
 
Aliás, a perversidade do arranjo é de tal magnitude que Cleo acredita na farsa e, mais, submete-se a ela de forma inconsciente. Para usar as palavras de Zizek, “Cleo está presa na armadilha que a escraviza”.
 
Mas há esperança: no fim do filme, Zizek vislumbra em Cleo uma revolucionária em potência. Ela vai libertar-se da exploração para adquirir —quem sabe?— uma verdadeira “consciência de classe”.
 
Dizer que discordo da interpretação de Zizek seria um eufemismo. E, aqui entre nós, não teria grande importância: questões de gosto não devem dar desgosto a ninguém.

O texto de Zizek interessa-me por outro motivo: ele revela bem como são limitadas as cabeças ideológicas. Por “cabeça ideológica”, entenda-se: uma “forma mentis” que apreende e organiza o mundo sempre da mesma forma, aplicando sempre os mesmos critérios e obtendo sempre os mesmos resultados.
 
Há algo de robótico, e consequentemente de não-humano, na “cabeça ideológica”. Perante “Roma”, imagino Zizek, sentado na escuridão do cinema, procurando os “oprimidos” e os “opressores” da trama —e identificando-os pela evocação automática da “luta de classes”.
 
Os patrões oprimem; a empregada é oprimida. Questões laterais como o amor genuíno das crianças por Cleo e de Cleo pelas crianças são imediatamente descartadas como “sentimentalismo burguês”. O mesmo vale para a cena —magistral— em que a avó, Teresa, leva Cleo ao hospital e desaba emocionalmente.
 
E se a violência dos patrões não é óbvia, tangível, brutal, então Zizek tem uma explicação para isso: “falsa consciência”. Cleo acredita que ama. Cleo acredita que é amada.
 
Pobre proletária. Ninguém a ama e, se ela abandonar a alienação sentimental onde vegeta, verá que também não deve amar ninguém.

É por isso que o filme de Cuáron acaba demasiado cedo, obrigando Zizek a escrever o seu último capítulo. Imagino os contornos desse capítulo: Cleo inscreve-se no Partidão, irrompe pela casa dos patrões e fuzila cada um deles. Só os cachorros sobrevivem. Só o amor deles foi verdadeiro e desinteressado, apesar do descontrole intestinal dos bichos que Cleo era obrigada a limpar.
 
Nas publicações ortodoxas, Slavoj Zizek é invariavelmente apresentado como um pensador original e o mais talentoso dos neomarxistas. Usar as palavras “original” e “neomarxista” na mesma frase já seria um contrassenso.
 
Mas, no caso de Zizek, o absurdo é exponenciado pelo cheiro de mofo que ele exala. O amor é uma construção burguesa?
 
Nem o amante despeitado da canção dos Pet Shop Boys acreditava nessa mentira.

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