João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Notas do subterrâneo

Como mestre da paranoia, Jordan Peele é o negro mais judaico que conheço

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Jordan Peele na premiere de "Nós", no Museu de Arte Moderna de Nova York, nos EUA6 - Eduardo Munoz - 19.mar.2019/Reuters

Algures na infância, um tio divertido avisou-me: todos temos um gêmeo no mundo. Alguém igual a nós —fisicamente falando— embora com uma vida diferente da nossa.

Não sei onde é que ele foi buscar essa ideia. Mas a ideia ficou —e comigo cresceu. Lembro-me de pensar: onde estará o meu gêmeo? Em Portugal? No Brasil?

E como será? Que vida terá? Mais rico? Mais pobre? Terá pais e irmãos? E a testa dele? Será mesmo tão alta quanto a minha?

Sempre que viajava para o exterior, ficava alerta. Quando estivesse caminhando por uma rua, entrando no restaurante, aguardando na fila de um aeroporto, o meu gêmeo cruzaria comigo.

Sou paranoico desde criança, eu sei. Mas o que dizer de Jordan Peele? Precisamente: ele é o mestre da paranoia. Peele é o negro mais judaico que eu conheço.

Lembremos "Corra!", filme que fez sucesso de crítica e que vi duas vezes. Só gostei à segunda. Nele, ele retrata a condição dos negros nos Estados Unidos.

Ilustração
Angelo Abu/Folhapress

Então encontramos Chris, que namora Rose. Chris é negro. Rose é branca. Quando se aproxima o fim de semana para conhecer a família dela, Chris está nervoso. Rose tranquiliza os seus medos: os pais votaram em Barack Obama. Os pais são progressistas, apesar de terem um exército de empregados negros em casa que agem de forma bizarra.

O que acontece a seguir é um festival de horror que não conto. Mas a mensagem de Peele, sempre servida por um fundo paródico (e autoparódico), é que ninguém —leia-se: nenhum negro americano— está a salvo.

Da primeira vez que assisti a isso, não comprei a tese vitimária de Peele. Da segunda, comprei tudo. Quem disse que as nossas paranoias têm de ser reais —para os outros? Elas são reais para nós, e o que interessa é a verdade subjetiva de quem cria. E o talento, claro, que Jordan Peele tem em abundância.

O mesmo vale para "Nós", o filme mais recente do diretor. Só que, desta vez, Peele abre o foco e enfrenta o país inteiro (o título original, "Us", tanto pode significar "Nós" como um acrônimo de "United States").

E se, em "Corra!", a principal divisão era racial, em "Nós" a diferença que interessa é de "classe".

É assim que encontramos o casal Wilson: o pai Gabe, a mãe Adelaide e os filhos Zora e Jason. São negros, mas isso é um detalhe. Como qualquer família branca de classe média (alta), eles têm casa de férias, barco no lago e amigos sintomaticamente brancos.

Fato: Peele não concede aos Wilson o mesmo patamar de riqueza dos brancos. O mundo ainda não é perfeito.

Aliás, o mundo é dramaticamente imperfeito. Sobretudo quando o submundo —no sentido literal e metafórico— resolve visitar os Wilson e todos os americanos que vivem "cá em cima".

Pela primeira vez nas suas vidas, os cidadãos de primeira classe vão conhecer os seus sósias de terceira categoria. E que desejam esses sósias?

Vingança, lógico; mas também buscam visibilidade aos olhos do mundo. Eles estão cansados de serem meras sombras de biografias alheias, sem existência social aos olhos da república.

Perante essa revolta da "underclass" (ou será do "underground"?), a família Wilson entende que só há um destino seguro: o México. Tem a sua piada ver esse país tão vilipendiado por Washington virar porto de abrigo para os americanos amedrontados. Mas Peele sempre teve um impecável sentido de humor.

Resta a pergunta: a caricatura marxista é para ser levada a sério?

Uma vez mais, é a pergunta errada. A pergunta certa é saber se "Nós" expressa uma neurose real para Jordan Peele.

Difícil dizer que não. Até porque a figura do "dopplegänger", entendido aqui como uma versão igual a nós que nos persegue incansavelmente, funciona menos como ameaça externa e mais como temor interno.

No caso, um temor duplo. Sim, o temor de que, um dia, os deserdados da terra reclamem um lugar à mesa.

Mas também o temor de que o outro, afinal, sou eu a sequência final assim o sugere —e que por mais que eu me proteja dessas trevas com brinquedos caros (carros, barcos, "status" etc.) chegará o momento em que esse lado negro, deformado, primitivo reclama a minha atenção.

E o meu gêmeo?

Já esquecia. Encontrei-o na idade adulta. Está bem de vida. É ator em Hollywood. O nome é John Cusack. Qualquer dia faço-lhe uma visita para reclamar o que é meu.

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