João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

O inferno das boas intenções

Quando não existe um mapa para orientar nossas decisões, a liberdade de escolha é um fraco consolo

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O nome é Cass Sunstein. Amigos eruditos tinham avisado: esse é o cara. Segundo eles, Sunstein era um dos mais relevantes pensadores americanos —e os seus textos sobre a arquitetura da escolha mereciam leitura por qualquer liberal ou libertário que se preze.

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia. Mas foi por acaso: em tarde chuvosa, entrei na Foyles de Londres e o seu último ensaio, “On Freedom”, chamava por mim. Peguei no livro —pequeno, pequeníssimo— e sentei-me no chão da livraria, a farejar o produto. Fiquei pasmo com a vacuidade do cavalheiro.

Antes de mais nada, apresentações: Cass Sunstein é professor de direito na universidade Harvard. Também trabalhou na administração de Barack Obama, liderando o seu Office of Information and Regulatory Affairs (escritório de informação e assuntos regulatórios).

Mas a fama de Sunstein atingiu alturas épicas quando publicou, em parceria com Richard Thaler, o best-seller “Nudge”. Esse “On Freedom” revisita o argumento do best-seller e acrescenta algo mais.

Ilustração
Angelo Abu/Folhapress

Eis a tese de Sunstein: quem disse que a liberdade de escolha potencializa o bem-estar pessoal? Ninguém, mas Sunstein acredita que sim para fazer valer o seu argumento.

Isso é um erro epistemológico, avisa ele. A liberdade de escolha nada significa se as pessoas não souberem como escolher; ou, pior, se escolherem mal.

Quando não existe um mapa que possa orientar as nossas decisões —o que Sunstein designa por navegabilidade— o fato de existir liberdade de escolha é um fraco consolo.

É por isso que existem “nudges”. Para Sunstein, os “nudges” são intervenções públicas que levam as pessoas para uma certa direção, preservando no entanto a sua liberdade de escolha.

Um exemplo: nas cafeterias escolares, a comida saudável está mais visível do que a “junk food”. O raciocínio é óbvio: devemos apresentar primeiro frutas ou legumes, sem impedir que as pessoas optem por pizzas ou hambúrgueres.

Acontece que Sunstein não está contente com esse paternalismo “soft” e rapidamente opta por uma versão mais “hard” (um clássico).

As pessoas são ignorantes. As pessoas não têm tempo. As pessoas nem sempre têm auto-controle. As pessoas têm preconceitos. No fundo, as pessoas nem sempre são os melhores juízes em causa própria.

Não basta influenciar ou manipular. Às vezes, é necessário restringir e coagir.

O mesmo exemplo: existem frutas e legumes (bem expostos). Existem pizzas e hambúrgueres (bem escondidos). Mas se os indivíduos escolhem “junk food” sistematicamente, isso sinaliza um vício perigoso. É preciso intervir (proibindo “junk food” na lanchonete da escola).

E se assim é com pequenos exemplos, assim será com os grandes. Sempre que provoco dano a mim próprio (fumo, drogas, esbanjamento etc.), há uma boa razão para o Estado interferir em minha liberdade.

Cass Sunstein é um pensador vulgar —em vários sentidos da palavra. Deixemos de lado o sofismo inicial de que a liberdade de escolha potencializa o bem-estar. Nenhum pensador sério diria tal coisa.

Para começar, a liberdade de escolha é um fim em si mesmo, não um mero instrumento para atingir o bem-estar. Ter essa liberdade, mesmo que eu decida não exercê-la, é importante para a minha dignidade como sujeito moral.

Além disso, mesmo que a liberdade de escolha me leve a escolher maus caminhos, é preciso não subestimar a importância do erro nesse processo de aprendizagem chamado vida humana. Limitar ou abolir o erro deixaria os indivíduos num estado permanente de ignorância e infantilidade.

Por outro lado, Sunstein é um pensador vulgar porque a sua proposta final de que o Estado deve interferir na minha liberdade para preservar uma liberdade mais “real” não é uma originalidade. É o credo de qualquer tirano.

O filósofo Isaiah Berlin, quando tratou dos seus “Dois Conceitos de Liberdade” (um negativo e outro positivo), já tinha alertado para as manipulações perigosas que o conceito de liberdade positiva tinha sofrido ao longo da história.

Se a única liberdade que toleramos é a liberdade para escolher o que é racional, cuidado: é preciso perguntar primeiro quem decide o que é racional. A ideologia do momento? O governo? Um comitê de sábios da universidade Harvard?

O ensaio de Sunstein é filosoficamente débil. Mas ele expressa bem o “espírito do tempo” das democracias paternalistas em que vivemos: um espírito feito de “boas intenções”, que às vezes terminam no inferno.

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