João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

O eterno retorno

Setenta anos depois do Holocausto, o antissemitismo está de volta em toda a sua 'normalidade'

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Era Karl Kraus (1874-1936), o famoso satirista austríaco, quem o afirmava: o antissemitismo era tão comum na Viena da virada do século que até os judeus o praticavam.

Entendo Kraus. Antes das duas guerras que deformaram o corpo e a alma da Europa, e sobretudo antes do Holocausto, o antissemitismo era uma atitude banal entre gentios e não-gentios: uma espécie de moda social, como usar gravata-borboleta, onde os grandes “hits” do antijudaísmo religioso, rácico ou político eram abertamente partilhados.

Cem anos depois, estamos de volta a Viena. Recentemente, o New York Times publicou um cartoon político de um chargista português (António). Na imagem, vemos Donald Trump (de quipá) segurando por uma coleira Benjamin Netanyahu (transformado em cachorro). O animal tem uma estrela de David.

Charge do artista português António Moreira Antunes considerada antissemita
Charge do português António publicada no New York Times - Reprodução

Confrontado com a sua própria imbecilidade, o jornal apresentou desculpas e prometeu continuar a combater o antissemitismo com afinco.

António, o autor da imagem, lamentou a censura do New York Times. E esclareceu o seu intento a um diário luso: desenhar “um político cego” (Trump) que é conduzido por “um cão” (Netanyahu) significa denunciar “a política de anexação de Israel”. Não podemos confundir o antissemitismo com críticas políticas a um país, concluiu.

Começo por dizer que não conheço pessoalmente o meu compatriota. E, sob pena de estar a cometer um crime de ingenuidade, acredito nas suas palavras. Ele desenhou o que desenhou porque a simples ideia de transformar um judeu em animal (um clássico do Terceiro Reich) não lhe ocorreu como ofensiva ou odiosa.

Não vale a pena sublinhar que, mesmo na sua ignorância, talvez o autor não fizesse o mesmo com um muçulmano transformado em porco, por exemplo.

Interessa apenas notar que o fez com um judeu porque o antissemitismo, 70 anos depois do Holocausto, está de regresso em toda a sua “normalidade”.

Aliás, não apenas na sua normalidade; também na sua amplitude ideológica.

Existe o antissemitismo do radicalismo islâmico, para quem os judeus são piores do que cachorros.

Existe o antissemitismo da extrema direita, para quem a "tribo de Israel" continua a ser um agente estranho no corpo da nação.

E existe o antissemitismo da extrema esquerda, para quem os Rothschilds deste mundo continuam a explorar os povos com o chicote do capitalismo.

A Europa, nesse quesito, é um bom caso de estudo. Recentemente, o Guardian divulgou uma exaustiva pesquisa da União Europeia que sondou 16,5 mil indivíduos que se identificam como judeus. O propósito da mega-enquete era conhecer as suas experiências e percepções de antissemitismo.   

A leitura do documento é trágica e triste (mas aconselhável). Nos 12 estados-membros onde o estudo ocorreu, 89% afirmam que o antissemitismo cresceu nos últimos 5 anos; 85% declaram que o problema é sério; 28% experimentaram na pele atos antissemitas durante 2018; e 34% evitam frequentar espaços ou eventos judaicos com medo das consequências.

E quem são os responsáveis pelos atos antissemitas?

Desconhecidos (para 31%); radicais muçulmanos (para 30%); ultra-esquerdistas (para 21%); e ultra-direitistas  (13%).

Naturalmente que essas experiências ou percepções não são uniformes nos 12 países europeus. A França parece ser o território mais opressivo (para 95%). A Bélgica (86%), a Polônia (85%) e a Alemanha (85%) vêm logo de seguida.

Estamos na presença de cabeças paranoicas?

Para os antissemitas, talvez. Mas olhando para alguns números oficiais igualmente revelados pelo Guardian, vemos facilmente que a subjetividade da comunidade judaica é bastante objetiva. Fiquemos pelos dois maiores países da União Europeia.

Na França, o governo de Emmanuel Macron informou que houve em 2018 uma subida de 74% no número de atos ou ofensas antissemitas.

Na Alemanha, e durante o mesmo período, o governo de Angela Merkel informou que houve uma subida de 60% no número de ataques violentos contra judeus.

Deprimente? Sem dúvida. Mas há sinais de esperança: no estudo citado, 38% dos inquiridos já ponderaram emigrar para fugir da velha besta.

E isso é uma esperança por quê?

Ora, leitor: porque os judeus da Europa estão hoje mais atentos do que nunca. É um progresso.

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