João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Como se perde um país

Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Se a democracia morrer no século 21, não será como no século 20. Eis, em resumo, o que vários cientistas políticos nos dizem. Hoje, ninguém acredita em tanques nas ruas ou bombas nos palácios. Há formas mais sutis de chegar ao mesmo fim: a supressão da liberdade e o triunfo do autoritarismo. E que formas são essas?

Um livro recente, que falha em muita coisa, acerta no essencial. Foi escrito por Ece Temelkuran, uma conhecida escritora turca. O título resume a ambição da obra: "How to Lose a Country - The 7 Steps from Democracy to Dictatorship" (como perder um país - os 7 passos da democracia à ditadura, em português).

Escrevi que o livro falha em muita coisa porque Temelkuran procura convencer o leitor de que o exemplo turco será seguido por outros países europeus e, é claro, pelos Estados Unidos de Donald Trump. Um caminho de centralização do poder que terminará com presos políticos, censura da mídia, eleições fraudulentas e a oposição no exílio.

Ilustração João Pereira Coutinho
Angelo Abu

Lamento. Não compro essa histeria. Por mais indigesto que Donald Trump seja, os Estados Unidos ainda não são a Turquia. A tradição democrática dos primeiros não pode ser confundida com a ausência de tradição da segunda.

Por outro lado, também não compro a forma displicente como Temelkuran inclui o brexit na vaga extremista que persiste na Europa.

Como se viu nas recentes eleições europeias, com a vitória do Brexit Party e a humilhação de conservadores e trabalhistas, os ingleses não apenas querem sair da União Europeia como não toleraram a traição que os dois partidos consumaram sobre o eleitorado, sabotando o que foi decidido nas urnas.

O livro de Temelkuran interessa-me por outro motivo: primeiro, porque é um retrato notável sobre a regressão democrática na Turquia; e, em segundo lugar, porque essa regressão pode ser imitada em democracias incipientes ou pouco consolidadas.

Segundo Temelkuran, essa viagem para as trevas começa com a criação de um movimento (como o partido AKP de Recep Tayyip Erdogan) que explora o ressentimento popular contra as elites (políticas, econômicas, midiáticas etc.) de forma a tribalizar a sociedade (nós versus eles).

Não que as massas —o "povo real", para usar essa expressão equívoca— não tenham razões de queixa. Mas o movimento vitimiza as massas de uma forma histérica e irracional, aumentando as suas dores.

Formado o movimento, há um assalto aos opositores que é também um assalto à linguagem (George Orwell sabia disso no seu "1984"). No melhor capítulo do livro, Temelkuran vai listando o tipo de argumentos que os partidários de Erdogan usam contra os inimigos.

Podem ser argumentos "ad hominem", quando é a pessoa a ser atacada, e não as suas ideias. Podem ser argumentos "ad ignorantiam", em que algo é refutado (ou defendido) porque ninguém o conseguiu provar (ou refutar).

E podem ainda ser argumentos "ad populum" —algo é verdadeiro porque muita gente acredita nisso, ponto final.

Como conclusão, a autora recorda um observação certíssima de Albert Camus: "Um homem com quem não se pode conversar é um homem a ser temido". Muitas democracias atuais converteram-se nesse inferno de Camus: espaços onde ninguém fala com ninguém.

Formado o movimento e a sua linguagem terrorista, há um assalto ao "sentido de decência" —o que era impensável e impronunciável por razões de civilidade é agora dito, repetido e normalizado.

Uma vez no poder, o movimento derruba os mecanismos judiciais e políticos que sustentam a democracia liberal (controle dos juízes; sabotagem de partidos rivais; eleições fraudulentas etc.).

Finalmente, e em plena consonância com experiências ditatoriais ocorridas no passado, o novo regime cria um "cidadão novo" (os "cidadãos velhos" não têm vez) e até um "país novo" (sobre os escombros do antigo). Assim, e nas palavras da autora, "a alma de um país é alterada irrevogavelmente quando ele repudia os seus cidadãos".

O livro de Ece Temelkuran é o testemunho pungente de quem acompanhou a deriva autoritária do seu país, exilando-se no processo.

Mas é também uma análise fina sobre o autoritarismo no mundo contemporâneo: um fenômeno que dispensa exércitos ou violência física, optando antes por uma guerra civil existencial em que uma parte da nação é renegada pela outra parte.

Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.