João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Corações das trevas

Será eticamente aceitável viajar por ditaduras que não respeitam direitos humanos?

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​Nunca visitei Cuba. Nunca visitei o Irã. Nem a China. Nem Angola. Não tenciono fazer turismo na Venezuela ou na Arábia Saudita. Há pessoas que têm como critério nunca viajar para países onde é necessário tomar vacinas primeiro. O meu critério é outro: ditaduras. Não são a minha praia, mesmo que tenham boas praias.

Cuba é o melhor exemplo. Anos atrás, quase fui espancado quando me recusei a partir para Havana. Nas palavras imortais de uma amiga, Cuba só tem piada enquanto o regime durar. Depois, não vale a pena. Será uma Ibiza no Caribe.

Entendo o raciocínio: “ter piada”, no contexto, é poder circular numa ilha como circulamos no zoo. Nós estamos fora da jaula, comendo pipocas. Atrás das grades estão seres humanos que só podem fugir dali remando ou nadando.

​Minha primeira objeção é moral: fazer turismo em ditaduras é uma forma de ajudar os ditadores. Também é uma forma de ajudar os habitantes dessas ditaduras, que precisam do turismo para a sobrevivência. Certo.

Mas o desconforto moral permanece: eu, cidadão livre, vivendo entre escravos, mesmo que os ajude. Não dá.

Mas as minhas reservas não são apenas éticas. São, à falta de melhor palavra, covardes. A minha “imaginação para o desastre” é uma maldição que nunca me abandona.

Há gente que teme vacinas, repito. Mas eu, olhando para o mapa-múndi, dedico-me a meditações mais prosaicas: o que será de mim se as coisas correrem mal na Argélia? Na Rússia? No Egito? Como confiar naqueles sistemas de justiça?

A minha paranoia é tão intensa que, mesmo viajando pelos Estados Unidos, sinto desconforto quando estou em estados com a pena de morte. Calma, gente. Não confundo um estado de Direito com estados sem direito. Mas há uma certa repugnância que não consigo evitar. E temor, ainda que irracional.

Pois bem: o New York Times resolveu partilhar o assunto com sete escritores de viagens. Será eticamente aceitável viajar por ditaduras que não respeitam os mais básicos direitos humanos? Todos os autores discordam das minhas premissas.

A escritora Noo Saro-Wiwa, por exemplo, defende que é preciso uma certa “dissonância cognitiva” quando deambulamos por lugares problemáticos. É a única forma de os tolerarmos e, já agora, de chegarmos às pessoas, às suas histórias, aos seus dramas.

O mesmo defende Pico Iyer: não seria pior para as populações desses países se vivessem em permanente isolamento? O contato com os estrangeiros é uma benesse quase humanitária.

É por isso que a escritora Dervla Murphy, magnânima, declara: ir ou não ir é uma questão de “consciência individual”. Não será ela a julgar os outros por fazerem viagens ao Egito ou... ao Brasil.

Descanse, leitor: não vou perder tempo com a observação. Uma “intelectual” que confunde o Egito (uma ditadura) com o Brasil (uma democracia) revela uma atrofia neuronal que não tenho competência para curar.

Mas vou fazer duas observações sobre a sabedoria dos sete autores.

A primeira, mais ou menos óbvia, é que eles confundem “turismo” com “reportagem”. Não são confundíveis. Turismo é lazer. Reportagem é testemunho. Viajar para o coração das trevas não é apenas uma questão de “consciência individual”.

É um dever de qualquer jornalista, sobretudo se ele tiver como propósito compreender e relatar a verdade. 

A segunda observação, menos óbvia, é que os sete autores vivem nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Irlanda. E nenhum deles refletiu sobre o fato: a possibilidade salvífica de terem sempre o passaporte certo para poderem regressar a Londres ou a Nova York.

Não que isso seja garantia de nada: o meu passaporte europeu não me protege da paranoia.

Mas o que eu tenho a mais, eles têm a menos. Ah!, como seria bom chegar a um consenso e fazer férias, sei lá, no Marrocos.

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