João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu

'Snowflakes' de direita

Se continuarem sabotando autores de esquerda, talvez o Brasil ganhe o seu Nobel

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Antigamente, o sonho de um filho era se emancipar da figura paterna. Não falo de Freud e dos desejos de “matar” o pai. Falo de algo mais simples como sair de casa, construir uma vida pelas próprias mãos, sair da sombra do progenitor.

Isso não significa “matá-lo”. Pelo contrário —só por meio dessa emancipação é possível amá-lo realmente, nas suas forças e fraquezas.

Eu tentei. Acho que consegui. Meu pai era advogado. No início, cursei direito, por breves meses. Imagino que, para o meu pai, ter um filho a quem pudesse legar o escritório era uma perspectiva agradável.

Não era para mim. Detestei o curso. Mas detestava ainda mais o futuro previsível, em vários sentidos da palavra “previsível”.

Desisti de direito, mudei de curso, mudei de vida. E até de cidade. O amor pelo meu pai, que aliás me apoiou nessa mudança, aumentou à medida que me tornei adulto. Longe dele e sem precisar de seu nome.

Hoje, a geração “snowflake” (floco de neve) parece deficitária nesse quesito. Sim, todos conhecemos os estudantes que, em contexto universitário ou até laboral, procuram recriar o ambiente seguro da casa paterna.

Desenho metalinguístico, em vermelho e preto, inspirado em cena do filme "Farenheit 451" de François Truffault, onde oficiais do governo queimam livros; em primeiro plano, estáo próprio livro "Farenheit 451" (de Ray Bradbury), no qual o filme foi baseado.
Angelo Abu/Folhapress

Mas há várias formas de ser “snowflake”. Um exemplo: que dizer dos filhos do presidente Trump, que parecem incapazes de ter vida própria longe do pai? E que dizer, já agora, dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, que padecem da mesma moléstia?

Pensei nisso quando lia, divertido, o tuíte analfabeto de Carlos Bolsonaro. O Brasil só terá mudanças rápidas por vias não democráticas?

Ah, pobrezinho. Se ele soubesse alguma coisa de alguma coisa, saberia que foi em democracia que os países ocidentais tiveram os progressos mais notáveis de suas histórias. Os regimes autoritários, com poucas exceções, levaram os respectivos países para o buraco.

Mas divago. Porque o ponto é outro —à primeira vista, nada mais longe de um “snowflake” do que o clã Bolsonaro. Eles usam pistola e falam grosso!

E, no entanto, há a mesma incapacidade de serem adultos por seus próprios meios, sem usarem e abusarem do oxigênio do pai.

Mas existem outras semelhanças entre a nova direita e os “snowflakes” que ela tanto critica. Em matéria de liberdade de expressão, por exemplo.

Sim, também todos conhecemos o desejo histérico dos “snowflakes” de esquerda de censurar as vozes conservadoras incômodas. Mas será que a nova direita é assim tão diferente com as vozes progressistas incômodas?

O Brasil é novamente um caso de estudo com a tentativa do prefeito do Rio em banir uma HQ com um beijo gay. O problema do gesto não está apenas na incompreensão básica de uma sociedade livre e pluralista. Isso é óbvio.

Menos óbvio é que, do ponto de vista estratégico, as tentativas de censura normalmente rebentam na cara de quem as comete. Posso contar uma história a respeito?

Em 1992, em Portugal, um membro do governo de direita vetou o romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, para o Prêmio Literário Europeu. Nas palavras do iluminado governante, o livro de Saramago atacava o patrimônio religioso dos portugueses e não podia ser representante da literatura lusa. Sabe o que aconteceu a seguir?

O caso foi noticiado nos jornais. Espalhou-se pelo mundo inteiro. O romance virou best-seller nacional e internacional. E Saramago emergiu como um escritor “perseguido” na sua própria terra.

Por coincidência ou não, decidiu deixar Portugal e viver na ilha espanhola de Lanzarote. Exato, como um “exilado”. Seis anos depois, o prêmio Nobel de Literatura chegava.

Simplifico? Claro que simplifico: a censura a Saramago não retira o mérito literário da obra, sobretudo 
em grandes romances como “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (o meu preferido).

Mas não é absurdo conjecturar que a censura oficial deu uma preciosa ajuda na consagração de Saramago.

Se a nova direita brasileira persistir na censura e na sabotagem de autores de esquerda, isso pode ser uma derrota para a liberdade de expressão.

Mas, quem sabe, talvez assim o Brasil tenha finalmente o prêmio Nobel com que sonha há vários anos.

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