João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Como as vítimas das ditaduras, silenciamos com medo nossas opiniões heréticas

Estamos menos livres porque, consciente ou inconscientemente, limitamos essa liberdade no próprio ato de pensar

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A liberdade de expressão já conheceu melhores dias. Tempos atrás, a revista The Economist dedicou um longo editorial ao assunto, no qual democracias e regimes autoritários partilhavam o mesmo palco.

Que a censura existe nas ditaduras, ninguém duvida. Nem ninguém se espanta. O ano de 2020 ainda mal começou e, segundo o Committee to Protect Journalists, já temos dois jornalistas mortos e 64 desaparecidos. Sem falar dos 250 que, até finais de 2019, continuavam presos nas masmorras ditatoriais.

Mas a censura também existe e persiste em regimes democráticos. É uma censura menos oficial mas mais descentralizada, com fanáticos de esquerda ou de direita a tentarem calar os respectivos inimigos –nas universidades, na mídia, nas redes sociais.

Um ponto, porém, não merecia atenção da Economist: a censura que existe dentro de cada um de nós. Se, mesmo em democracia, estamos menos livres (e estamos), isso não se deve apenas aos censores que existem lá fora, no anonimato da internet ou na estupidez das multidões estudantis.

Estamos menos livres porque, consciente ou inconscientemente, limitamos essa liberdade no próprio ato de pensar. Eis o supremo paradoxo: não vivemos em ditaduras mas nos comportamos como as vítimas das ditaduras, silenciando com medo nossas opiniões heréticas.

É por isso que li com agrado o discurso que o jornalista americano George Packer proferiu ao receber o Hitchens Prize, um prêmio que honra a memória do saudoso Christopher Hitchens. Sobretudo porque Packer identifica os dois inimigos invisíveis para qualquer jornalista ou escritor.

O primeiro inimigo é a obrigação de pertencer. Em teoria, a escrita depende de uma voz individual, de um mundo próprio, de uma perspetiva singular. A lealdade do jornalista é à verdade. A lealdade do escritor é à sua própria verdade.

Não mais. Hoje, a lealdade ao grupo, ao partido, à facção suplanta a primeira pessoa do singular.

O escriba vê-se como o representante dos interesses de uma classe –as mulheres, os negros, os gays, os brancos, a direita, a esquerda, os extraterrestres– e os próprios leitores entram nesse jogo viciado.

Como afirma Packer, a primeira pergunta do leitor é saber quem é o autor. Não em sentido biográfico. Em sentido ideológico, partidário. Tribal. Só para ter a certeza que navega nas mesmas águas.

Sei que assim é. De vez em quando, recebo emails de leitores que começam sempre com uma ressalva: “apesar de você ser de direita, gostei do texto etc.”

E o inverso também acontece: leitores de direita que se indignam comigo porque eu me afastei da linha justa. Que essa linha só exista na cabeça deles, eis um pormenor que nunca lhes ocorreu.

Por último, George Packer acerta em cheio ao falar do nosso grilo falante. Sim, aquela vozinha interior que está sempre disposta a policiar os pensamentos. Será que eu posso escrever isso? Será que eu devo? Será que eu serei punido pela minha imprudência?

 “The mob has the final edit”, escreve Packer. A multidão tem a última palavra –a multidão das redes sociais, claro, sempre disposta a sacrificar uma nova presa no seu altar. Quem arrisca?

No discurso, Packer aconselha os colegas de ofício a não terem medo de ficarem sós. Sós com a verdade. Sós com a complexidade. Sós com os seus princípios.

É um conselho nobre. Ao qual acrescento mais um: as desvantagens da solidão, no longo prazo, são mais toleráveis do que as vantagens momentâneas de destruir a voz por covardia. 

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