Existe uma ideia extravagante que amigos brasileiros têm de Portugal: o país é muito conservador. Não sei onde foram buscar essa certeza. Nas últimas eleições gerais, em 2019, mais de metade dos eleitores escolheu partidos de esquerda e de extrema esquerda.
E, em matéria de costumes, Portugal liberou o consumo de drogas. Liberou o aborto. Liberou o casamento gay. Se isso é um país conservador, o que será um país progressista?
E agora, para juntar ao cardápio, o Parlamento legalizou a eutanásia. Fato: a lei será afinada na discussão da especialidade. E o presidente da República, recusando a promulgação da lei, pode vetar ou enviar o diploma para o Tribunal Constitucional.
Mas a aprovação final será uma questão de tempo: em 2020, Portugal entrará no restrito clube de países europeus que permitem a eutanásia. Como a Bélgica, Luxemburgo e a Holanda.
Fui publicamente contra esse passo gigantesco. É possível que esteja em minoria: enquete recente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa informa que 43% dos lusos são favoráveis à prática; 28% se opõem; e 22%, sintomaticamente, não têm tantas certezas. E sou contra porque?
Basicamente, porque não aceito a premissa central dos defensores da morte antecipada: se a vida é minha, eu devo dispor dela como entender.
No sentido básico da expressão, isso é verdade: como dizia Albert Camus ao revisitar o mito de Sísifo, o suicídio é a questão filosófica fundamental.
O problema, porém, é que na eutanásia o indivíduo não está sozinho com a sua pedra gigantesca. A sociedade —e, em particular, o médico— é chamada a essa decisão irreversível.
Por outras palavras: uma questão de pura liberdade pessoal se converte em problema político e social.
E, para citar um exemplo que era caro a John Stuart Mill (1806 – 1873), não é pelo fato de eu respeitar a liberdade individual que devo tolerar a escravidão voluntária. Mesmo que o indivíduo, a troco de comida, se disponha a ser escravo de outro, existe uma razão ponderosa para que uma sociedade decente não o permita.
De igual forma, mesmo que alguém deseje morrer, isso não cria um direito, “ipso facto”, para que o médico assuma um papel que é contrário à tradição e à deontologia.
Mas a questão não é apenas filosófica. No caso português, é tragicamente palpável: a grande maioria dos portugueses não tem acesso a cuidados paliativos, que deveriam ser a primeira resposta a qualquer quadro clínico de dor considerável.
O professor Miguel Oliveira e Silva, catedrático de ética médica da Universidade de Lisboa, revela números chocantes: 80% a 85% dos portugueses não têm esse acesso garantido. A espera pode chegar aos seis meses, o que é simplesmente desumano. O que significa isso?
Significa que falar de liberdade, quando não existem reais opções para que ela seja exercida, não passa de uma figura de retórica. Ainda nas palavras de Oliveira e Silva em entrevista ao diário português Público, disponibilizar a eutanásia sem cuidados paliativos é “coagir a pessoa a uma escolha enviesada e capciosa”.
Concordo. E concordo sobretudo quando o especialista conclui que essa cultura é injusta para com os mais pobres. Os mais ricos, como sempre, terão todas as opções em aberto.
Será isso um sinal de progressismo? Ou, pelo contrário, é uma forma de instituir, com as melhores intenções, vidas de primeira e vidas de segunda?
Espero estar errado. Mas a história que ontem se escreveu no Parlamento português, às pressas e sem real discussão pública, será o princípio de uma pista escorregadia rumo à banalização da morte por estas bandas.
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