João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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'Jojo Rabbit' falha ao explicar o nazismo de forma infantil

A mensagem do filme é piegas: tudo teria sido diferente se os alemães tivessem dado uma chance ao conhecimento do outro

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Cinema e nazismo? Nem sempre corre bem. Um exemplo é “Jojo Rabbit”, de Taika Waititi, que levou o Oscar de melhor roteiro adaptado. Suspiros. Onde está a excelência de uma história que, sob a capa da originalidade, repete todos os clichês sobre o nazismo?

Comecemos pelas apresentações: Jojo (Roman Griffin Davis) é uma criança de dez anos que tem como amigo imaginário o velho Adolf. O sonho de Jojo é seguir as pegadas do mestre, livrando o mundo de judeus. Pelo menos, até o dia em que conhece um exemplar da espécie e descobre, incrédulo, que os judeus também são gente.

Ilustração de duas cenas sobrepostas. A primeira, desenhada em preto, é uma mulher virando a cabeça para trás. A segunda, desenhada em vermelho, é uma mulher estendendo a mão para um homem que está dentro de um vagão de trem.
Angelo Abu/Folhapress

A mensagem do filme é tão delicodoce que pode provocar diabetes: tudo teria sido diferente se os alemães tivessem dado uma chance ao conhecimento do outro. Não deram. Foi pena.

O problema do filme não está no tom pícaro com que Hitler e os nazistas são retratados. Pelo contrário: Adolf e os seus capangas sempre renderam bons palhaços de matinê. Basta pensar em Chaplin com “O Grande Ditador”. Ou na imortal série inglesa “’Allo ’Allo!”, que destruiu para a eternidade o mito da superioridade rácica ariana.

Nesse sentido, o melhor de “Jojo Rabbit” está nos primeiros 15 minutos, quando tudo é delírio gráfico e Jojo procura, sem sucesso, ser um “übermensch” em ponto pequeno.

E quem fala em Jojo, fala no seu amigo Yorki (o espantoso Archie Yates), outro pequeno nazista que fala com um pedantismo digno de Noël Coward.

O calcanhar de Aquiles da obra de Waititi reside na explicação infantil do fenômeno nazista —um punhado de ideias más que um homem muito mau plantou na cabeça de inocentes.

Um erro. Os alemães nunca foram inocentes. Daniel Goldhagen, no insuportavelmente bom “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, mostrou de forma definitiva como o antissemitismo era endêmico muito antes de Hitler chegar ao poder.

De igual forma, não foi por falta de conhecimento empírico que os alemães desumanizaram os judeus.

Todos se conheciam. E raros foram aqueles que levantaram a voz quando os colegas ou os vizinhos começaram a desaparecer.

Para encontrar um filme recente que está ao nível da obra de Goldhagen, é preciso esperar pela estreia de “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick, no dia 27 de fevereiro.

É uma meditação poderosa, estética e, eticamente falando, sobre a natureza do mal. 

Melhor dizendo: sobre a capacidade humana para reconhecer o mal como mal.

Não é fácil. Todos estamos mergulhados no fluxo histórico do nosso tempo, aceitando como verdade as múltiplas verdades relativas que circulam ao redor. Como dizia o satirista Karl Kraus sobre a Viena do seu tempo, o antissemitismo era tão normal que até os judeus o praticavam.

Ou então, como afirma um personagem do filme, se os cristãos de hoje pudessem recuar na história, muitos deles estariam ao lado de Barrabás.

Mas há exceções. Franz Jägerstätter, personagem real, foi uma delas. No início do filme de Malick, ele vive literalmente acima das nuvens, vivendo em harmonia com as coisas simples: a terra, o trabalho, a família. A fé.

O idílio será destroçado com a anexação da Áustria pelas tropas de Hitler em 1938. Franz é convocado para o exército invasor. Para matar em nome do Reich. Mas como aceitar esse mandamento quando existe um outro mandamento, mais primordial, que proíbe a matança?

Franz hesita. Entram em cena diversas formas de tentação —demônios com caras múltiplas que lhe oferecem o mundo terreno se ele esquecer, por momentos, essa lei fundamental gravada no coração dos homens. Mas como esquecer essa lei quando ela é o alicerce da alma?

Franz tem a clarividência dolorosa dos mártires. E, com essa luz, vem uma liberdade interior tão radical que nenhuma mão humana é capaz de aprisioná-la.

O filme de Terrence Malick não é apenas um tratado magistral sobre as predações da besta totalitária. Ele se ocupa de uma das questões mais importantes da vida moral e política: devemos obediência aos senhores seculares simplesmente porque eles detêm um poder circunstancial?

Ou só devemos essa lealdade à nossa consciência?

Resistir a Hitler em 1933 teria sido possível se os alemães conhecessem melhor o outro, diz “Jojo Rabbit”.

Simpático, mas falso. Como ensina “Uma Vida Oculta”, essa resistência teria sido mais eficaz se os alemães conhecessem melhor a eles próprios.

Erramos: o texto foi alterado

O filme "Jojo Rabbit" ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado, não o de melhor roteiro original. O texto foi corrigido.

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