João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Novo de Spike Lee é filme poderoso sobre condição dos negros nos EUA

'Destacamento Blood' estreou na Netflix porque não houve Festival de Cannes esse ano

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O ano de 2020 será lembrado pela pandemia. E pelo homicídio de George Floyd, que despertou confrontos sociais como já não se via desde 1968.

Mas o ano de 2020 será também lembrado por dois filmes de Spike Lee que, explícita ou implicitamente, lidam com esses dois acontecimentos.

O primeiro filme é um tributo do diretor a Nova York. Melhor dizendo: a uma cidade que ficou deserta por causa do novo coronavírus. Em três minutos e ao som de “New York, New York” pela voz de Frank Sinatra, vamos viajando pelos lugares icónicos da cidade até chegarmos a um Empire State que se cobre de vermelho em homenagem aos profissionais de saúde.

O curta ficará como documento histórico destes tempos pestíferos. Mas ela também vale como miniobra de arte —pela cadência da edição, pela beleza dos planos, pelo espantoso tom da elegia— ao nos revelar uma cidade ferida, mas sempre preparada para renascer. Está disponível no Youtube e vale cada segundo.

O outro filme é “Destacamento Blood” e estreou na Netflix porque não houve Festival de Cannes esse ano. Está entre os melhores filmes de Spike Lee, o que significa que partilha o pódio com “Faça a Coisa Certa”, “O Verão de Sam” ou “A Última Noite”.

A história é convencional, ou pelo menos parece que é. Quatro amigos negros, em plena velhice, regressam ao Vietnã para recuperarem os restos mortais de um quinto camarada de armas, que ali morreu na guerra homônima.

Mas o objetivo dos quatro não é apenas exumar o amigo. É também desenterrar um tesouro e transportá-lo para os Estados Unidos.

À primeira vista, “Destacamento Blood” é uma mistura de “Rambo” com “O Tesouro de Sierra Madre”, sem esquecer as referências óbvias a “Apocalypse Now”.

Mas o talento de Spike Lee supera qualquer imitação. Mais: ele usa e abusa de todos esses gêneros para os detonar —no sentido literal e metafórico. O que explica o tom de farsa e melodrama que, não raras vezes, coexistem na mesma sequência.

Porque o programa de Spike Lee é outro —e é duplo.

Por um lado, ele parte de uma perplexidade histórica fundamental: como explicar que os negros tenham lutado pela bandeira dos Estados Unidos quando essa mesma bandeira nem sempre os incluiu no contrato social?

Essa questão é posta logo de início, com imagens de arquivo de Muhammad Ali. O campeão de boxe se recusou a marchar para o Vietnã. Viu a sua carreira suspensa e perdeu o título de campeão mundial.

Mas, como afirma Ali em referência ao “inimigo” vietcong, “eles nunca me chamaram negro”. Viajar milhares de quilômetros para lutar e matar quem nunca o humilhou seria um contrassenso imperdoável.

O Vietnã foi uma guerra mortífera e inútil —para uma geração inteira. Mas, quando sabemos que mais de 30% dos soldados americanos eram negros e que os “direitos civis” nem sequer estavam garantidos para muitos deles em solo americano, a injustiça da guerra ganha contornos ainda mais profundos.

Mas Spike Lee não se limita a relembrar velhas (e novas) injustiças de brancos contra negros. Ele não se esquece das injustiças fratricidas de negros contra negros —e a “febre do ouro” no filme é a metáfora dessas batalhas. O que leva os irmãos a se dividirem e a se matarem? A ganância? A psicose? O ressentimento?

Será que eles não entendem que só com a reconciliação e a unidade é possível enfrentar o mesmo desafio, ou seja, o racismo que vive e sobrevive nesses Estados Unidos ainda por cumprir?

Em duas horas e meia, “Destacamento Blood” é uma obra excessiva e poderosa sobre a condição dos negros na história americana. E sobre a relação traumática e ambígua que mantêm com essa história, povoada por fantasmas que se recusam a desaparecer.

Porque o passado nunca está morto, como dizia Faulkner. Aliás, “nem sequer passou” —uma evidência que 2020 deixará para a posteridade.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.