João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Antes comunistas, hoje bruxas são brancas, privilegiadas e cisgênero

'Cultura do cancelamento', o macarthismo de esquerda, por enquanto só arruína reputações e carreiras

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Caçar bruxas? Não depende apenas da vontade dos caçadores. É preciso cúmplices. Gente que fica de bico calado, tornando a vida dos caçadores mais fácil.

O macarthismo é um exemplo. Falo da paranoia persecutória que o senador Joseph McCarthy lançou contra comunistas, reais ou imaginários, nos Estados Unidos da década de 1950. Fato: as perseguições começaram antes de McCarthy (para sermos exatos, em 1938). Mas foi ele quem levou as perseguições a um novo patamar de violência e delírio. E por quê?

Porque a Suprema Corte deixou. Porque as universidades, as empresas, os sindicatos deixaram. E porque os estúdios de Hollywood deixaram, elaborando as famosas “listas negras” com nomes de atores, roteiristas, diretores ou técnicos “problemáticos” aos olhos do delirante McCarthy. E quem era McCarthy?

Ilustração de duas pessoas amarradas sobre fogueiras, enquanto várias estão ao redor da cena
Angelo Abu/Folhapress

Ninguém, como se viu em 1954. Bastou o advogado Joseph Welch lhe fazer uma pergunta retórica durante uma audição pública —“O senhor não tem nenhum sentido de decência?”— para que o inquisidor-mor explodisse.

O rei, afinal, estava nu. Mas o mal estava feito. Não apenas o mal objetivo de ter destruído milhares de carreiras e aprisionado centenas de pessoas.

Também houve um preço artístico. Os historiadores são unânimes ao considerar a década de 1950 uma das piores da história do cinema americano, como se a energia e a criatividade tivessem sido sugadas da indústria.

Como escreve Peter Biskind no seu “Easy Riders, Raging Bulls”, foi preciso esperar por 1967 —ano de “Bonnie e Clyde” e “A Primeira Noite de um Homem”— para que o cinema americano voltasse ao mundo dos vivos. Em certos casos, com nomes que estiveram na “lista negra”. Lição de aviso: os caçadores não caçam apenas bruxas, mas as poções vitais que só elas sabem fazer.

E o que é válido para o macarthismo de direita é válido para o novo macarthismo de esquerda —a chamada “cultura do cancelamento” que, por enquanto, só arruína reputações e carreiras. A prisão será o próximo passo?

Isso depende do silêncio dos cúmplices, razão pela qual é sempre de aplaudir “Uma Carta sobre Justiça e Debate Aberto”, que 150 autores, de esquerda ou de direita, brancos ou negros, mulheres ou homens, publicaram na revista Harper’s.

O que eles dizem é banal. Ou era, alguns anos atrás, e se divide em duas premissas.

Para começar, uma sociedade livre, politicamente livre, define-se pela troca de ideias e de informações, não pela conformidade ideológica e pela humilhação pública de heréticos.

Para acabar, essa liberdade também é fundamental por razões extrapolíticas: ela é o alicerce do pensamento e da criação. Preferimos o mundo fossilizado da década de 1950 ou a voragem criativa de 1970?

Sem surpresas, a carta teve reações. E a mais impressiva foi uma outra carta, igualmente assinada por mais de 150 intelectuais, e publicada no site The Objective.

É um “casus belli” de má-fé: os subscritores não se limitam a discutir argumentos. Preferem, como os velhos caçadores, inaugurar a caçada com duas perguntas que destroem o debate: “Quem são as bruxas?” e “Onde se escondem elas?”.

Ontem, as bruxas eram comunistas, simpatizantes de comunistas, ou nem uma coisa nem outra. E se escondiam atrás da lealdade ao partido e a Moscou.

Hoje, as bruxas são majoritariamente brancas, privilegiadas e cisgênero.

E se elas advogam liberdade de expressão para todos, isso significa, “ipso facto”, liberdade de expressão só para elas, que não querem ser criticadas.

Encontrar uma ponta de lógica nessa última frase é tempo perdido. A má-fé cria a sua própria lógica.

Comecei pelo cinema, termino com ele. Em 1976, Woody Allen interpretou o melhor papel da sua carreira em filme de Martin Ritt. Falo de “Testa-de-Ferro por Acaso” e o personagem de Woody, Howard Prince, é, como o título indica, um testa-de-ferro de um roteirista perseguido por Joe McCarthy. O que significa que Howard assina os roteiros como se fossem da sua autoria e recebe uma percentagem pelo serviço.

Até ser intimado a depor no Comitê de Atividades Antiamericanas. A sessão de perguntas e respostas é antológica.

Mas mais antológica ainda é a forma como Howard termina com a farsa: não reconhece legitimidade aos inquisidores e se despede deles com um intraduzível “you can all go fuck yourselves”.

Em 2020, e contra os novos caçadores, eis a resposta que não envelheceu uma ruga.

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