João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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'Lindinhas' é um filme sutil sobre a forma como adultos atraiçoam crianças

Por submissão ou abandono, elas são condenadas à tirania da tradição e da carne

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Sou como o cachorro de Pavlov: ouço falar em polêmica e lá vou eu, salivando e agitando a cauda, em busca de mais um osso. Agora, o osso dá pelo nome de “Lindinhas”, o filme de Maïmouna Doucouré em exibição na Netflix.

Nas palavras de Mariliz Pereira Jorge, o filme teve o mérito de desagradar a reaças e progressistas: ambos deploraram a “sexualização da infância”, embora por motivos distintos.

Os primeiros em nome dos “bons costumes”. Os segundos, de inclinação feminista, porque não gostam de ver homens babando com meninas pré-púberes.

Assisti ao filme. No final, pedi tratamento neurológico: a minha cabeça já não é o que era. “Lindinhas”, na minha defeituosa interpretação, é um filme sutil sobre a forma como os adultos, sejam eles reaças ou progressistas, atraiçoam as crianças. Por submissão ou abandono, entregam-nas à tirania da tradição ou da carne.

Entender isso passa por falar de Amy, interpretada por Fathia Youssouf, a espantosa protagonista do filme. Li vários artigos sobre a polêmica. Mas contam-se pelos dedos de uma mão aqueles que usaram essa pequena e desconfortável palavra: Islã.

Pois é: Amy é filha de pais muçulmanos imigrados na França e o destino que a espera não é muito diferente do destino da mãe. Casar (muito cedo); obedecer ao macho; e, quando o macho decidir trazer outra mulher para casa, aceitar a poligamia com um sorriso nos lábios.

Verdade que a mãe de Amy não tem um sorriso nos lábios. Na melhor sequência do filme, vemos Amy, escondida debaixo da cama da mãe, a escutar o choro daquela pobre mulher porque o homem foi ao Senegal buscar mais uma donzela.

Mas é preciso manter as aparências, cozinhar para o casamento e usar a vestimenta apropriada.

Amy, muito compreensivelmente, não quer manter as aparências. Nem deseja a mesma vida da mãe. Quer ser uma menina como as outras, divertir-se, ter amigas e, palavra importante, dançar.

Não há nada que horrorize tanto a mentalidade fanática, e em particular a mentalidade fanática islamita, do que a dança. O influente teórico da “jihad” Sayyid Qutb, quando andou pelos Estados Unidos na década de 1950, deixou-nos páginas admiráveis (“admiráveis” no sentido sinistro do termo) sobre a forma como as americanas dançavam.

Pior: dançavam com homens! Pior ainda: dançavam com homens, usando batom e minissaia! Se o leitor pensa que a ministra Damares é a princesa do obscurantismo, experimente ler Sayyid Qutb.

Em poucas palavras, as americanas tinham o diabo no corpo –e não é por acaso que, em outra sequência notável de “Lindinhas”, Amy parece possuída pelo belzebu quando a mãe e a avó a tentam purificar.

Mas a traição dos adultos não se faz apenas pela submissão a preceitos fundamentalistas. Existe outra traição —e ela está contida na amiga de Amy, Angelica, interpretada pela atriz Médina El Aidi-Azouni.

Fato: o problema de Angelica não é a existência de uma tradição opressora. É o contrário: a ausência de qualquer tradição, de qualquer família, de qualquer interesse parental por ela.

Em diálogo revelador entre as duas amigas, Amy confessa que o seu maior sonho é que o pai nunca mais retorne do Senegal, onde foi à caça de uma nova fêmea.

Para Angelica, o sonho é outro: gostaria que os pais a vissem a dançar. Só para confirmarem que a filha, no fim das contas, até tem algum valor.

É das entranhas da opressão e do abandono que emerge a tão falada “sexualização da infância”: com tão maus modelos em casa, só sobra a vulgaridade da internet para “educar” aquelas crianças.

“Lindinhas” é um filme de extremos porque formula uma pergunta radical: será que a única coisa que temos para oferecer são os calabouços da religião ou a vileza da pornografia?

Não haverá um meio termo entre a tradição e a liberdade, entre a cultura e a modernidade, que podemos simplesmente definir como “uma vida normal”?

Que essas perguntas tenham passado ao lado de reaças e progressistas, não admira: voltando aos cachorros de Pavlov, eu não passo de um amador.

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