João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Populismo vai continuar mesmo que Donald Trump seja derrotado nas eleições

No mundo de cima, esquerda e direita estão juntas no desprezo pelo mundo de baixo

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O povo desapareceu. No debate político, atenção. Leio artigos, assisto a debates. E o povo, que era um clássico da esquerda, não existe mais. Todo mundo fala em minorias, dezenas delas, separadas em seus universos estanques.

Mas do povo —operários, agricultores, funcionários públicos, aposentados—, nem uma palavra. Que se passou?

Hipótese um: não há mais povo. A comida que comemos, os objetos que compramos, os serviços que usamos, tudo isso aparece por geração espontânea. Basta usar o aplicativo e contatar o planeta Amazon ou o planeta Uber.

Hipótese dois: o povo ainda existe. Mas foi relegado para as margens da história e do debate público.

O geógrafo francês Christophe Guilluy defende a segunda hipótese em “O Fim da Classe Média – A Fragmentação das Elites e o Esgotamento de um Modelo que Já Não Constrói Sociedades” (Record). Em bom português, é um “tour de force”.

Eis a proposta de Guilluy, que há vários anos estuda a realidade escondida da “França periférica”: o mundo de cima abandonou o mundo de baixo —a classe média ocidental.

Alguns eruditos, confrontados com a expressão “classe média”, podem ficar confusos: falamos do proletariado ou da classe média propriamente dita?

A pergunta é absurda. A classe média ocidental também inclui o proletariado. Essa, aliás, foi a suprema “traição de classe” na profecia marxista: o proletariado, entre a revolução e o aburguesamento, optou pelo aburguesamento.

Foi uma opção que não teve continuidade a partir da década de 1980. A globalização, com seus vencedores e perdedores, foi jogando a classe média para o mundo das periferias.

Podem ser as periferias das grandes cidades, porque só os vencedores podem viver e trabalhar nas metrópoles.

Ou então são pequenas cidades, ou antigos centros industriais, onde logicamente não estão as grandes oportunidades.

Mas a precarização da classe média não é apenas económica. É também cultural: depois da Segunda Guerra, as sociedades ocidentais participaram, em conjunto, das grandes mutações econômicas e sociais. Foram 30 anos gloriosos —e todos, enfim, tiveram a mesma experiência de pertença.

Não mais. A perda de estatuto econômico significa também a perda de estatuto simbólico. Quando o mundo de cima fala do mundo de baixo, é para o ridicularizar ou insultar. Gente estúpida, imbecil, racista, caipira, “deplorável” —você sabe do que eu estou falando.

Foi assim que a classe média desapareceu. Não pela violência. Pela secessão do mundo de cima —e aqui não há diferenças entre esquerda e direita. No mundo de cima, ambas estão irmanadas no mesmo “desprezo de classe”.

Fatalmente, existem dois problemas com essa ruptura, lembra Guilluy.

O primeiro problema é que o mundo de baixo é majoritário. Já era majoritário antes da pandemia. Depois da pandemia, e perante a destruição econômica que ela provoca, será ainda mais numeroso —e periférico.

O segundo problema é que o mundo de cima já não consegue influenciar, acalmar ou controlar o de baixo. E, quando isso acontece, “nenhum modelo é durável se entra em contradição com os interesses do maior número”, avisa o autor.

O resultado disso é que o fenômeno populista não é um epifenômeno, mesmo que Donald Trump seja derrotado em novembro. É uma decorrência natural, ou inevitável, da deserção das elites.

Para usar os exemplos históricos (e bem franceses) do ensaio, vivemos uma espécie de Revolução Francesa do avesso. Uma revolução que começa com a fuga de Varennes (das elites de esquerda ou de direita) e termina com a tomada da Bastilha (pelo povo).

O diagnóstico de Guilluy, confesso, não me espanta. A esse respeito, uma breve divagação: de vez em quando, perguntam-me o que será o conservadorismo do século 21. O que há para conservar, afinal, ó Coutinho?

Duas coisas, respondo sempre. A primeira é a tradição da democracia liberal que triunfou no século 20 sobre todas as formas de autoritarismo. A segunda é evitar a fratura social potencialmente revolucionária que só um cego não vê.

Na linguagem conservadora, esse imperativo tem nome: organicismo. É a noção de que a sociedade é um organismo vivo, dotado de ligações fundamentais capazes de assegurar o bem comum, e não uma coleção de indivíduos ou de “identidades”.

Conservar esse organismo não significa combater ou abolir a globalização, como se isso fosse possível ou até desejável. Significa tão só, e como defende sabiamente Guilluy, permitir que o mundo globalizado possa conviver com uma sociedade popular mais igualitária.

Significa, em suma, um pouco de decência no tratamento que o mundo de cima concede ao de baixo.

Como afirma o autor, em palavras que deveriam ser gravadas no íntimo mais íntimo de cada um de nós: “É preciso ajudar as elites americanas a compreender que nem todos os operários são deploráveis; ajudar as elites francesas a perceber que as classes populares são mais do que desprezíveis “sem dentes”; ajudar os ricos, o mundo das mídias e as universidades a reencontrar o caminho da paz com os mais modestos. No século 21, as classes dominantes e superiores devem enfim aprender a viver em conjunto, com seu povo. Trata-se da sobrevivência das sociedades ocidentais; trata-se de sua própria existência”.

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